Palavras...

de: Sofia FIGUEIRAS

   
           
     
Prefácio
 

Nos finais do ano lectivo 2000/2001, quando saímos da sala, terminada a aula, a Sofia confidenciou-me ter em fase de conclusão um livro de poesia que pretendia publicar. Esta revelação deixou-me muito agradavelmente surpreendida e expectante É que a Sofia foi minha aluna. Durante três anos, partilhamos uma cúmplice experiência de trabalho que nos levou ao encontro de poetas e prosadores portugueses. Durante esse tempo, acompanhei o seu percurso empenhado e interveniente de descoberta e amadurecimento afectivo e intelectual. Mas a surpresa e expectativa aumentaram com a informação de que o livro era um projecto plural, de duas amigas que decidiram trazer a público o seu trabalho poético, pessoal e individualizado. E "palavras..." chegou, enformado por uma poesia claramente intimista na expressão de inquietações pessoais, das interrogações do "eu", das dúvidas e ânsias que marcam a condição humana. É uma poesia onde são perceptíveis marcas intertextuais, sem prejuízo do seu carácter pessoalíssimo, ainda que sem traços biográficos. O texto constrói-se assumindo muitas vezes forma dialógica, de interpelação directa de um interlocutor confidente e cúmplice de vivências e percursos feitos. A mensagem organiza-se com largo recurso a jogos de palavras, onde a metáfora e a adjectivação suscitam imagens e sensações ousadas. O verso solto, de metro irregular, concorre para a musicalidade e harmonia estéticas. Há, assim, na confluência destas linhas de força, a afirmação de uma produção poética muito especial, que se afirma adulta e maturada a despeito da juventude das suas autoras.


     Maria Amália Reis Amaral


 


 


POSFÁCIO


quatro palavras para um epílogo


 


   


1.


 


Ferve a tarde.
Fervem as palavras disparadas
no cala-a-boca[1]
e eu busco na memória das pedras
as passadas
dos omi garandi[2]
e no tchur[3] da noite
o bombolom[4] apazigua
outras angústias.


 


Fervem os sonhos
nos  vulcões ensanguentados
de todos os fonemas
e por entre os medronhos
deste fim de dia
irrompe, calma e cálida,
a calmaria.


 


Fervo
e me subterfúgio
em um memorial solitário
de palavras aurorais.


 


 


2.


palavras...


São de palavras as memórias que anunciais. Ou as palavras são as memórias?(p.4) Ou são as memórias das palavras ditas? Nenhum real acontece sem palavras. Sem palavras, nenhuma memória é possível.


Com palavas-memória se constrói  palavras...   


 


3.


Com “palavras que vêm do fundo do mar / e procuram / cuidadosas”(p.69)  um rosto, se desenham, no azul da folha branca, vivências de um real adolescente. Um(a) real-idade das angústias. Que o amor fugiu. Que na subfície do eu há apenas amargura no mim. Que  Deus é uma abstracção em que não se crê.


  


Buscais-vos, assim,  buscando “a certeza da verdade”(p.51)


 


... no amor


 


Em quase todos os textos há um destinatário imediato. Um tu. Às vezes um ti. Inúmeras um te. Quando não um teu. Um outro. Um outro que se aqui e ali é uma amiga (p.41) quase sempre se cumpre  na totalidade da face do amor. De um amor que faz doer (p.43) e nos invade todo o espaço (p.38); de um amor que se deixou para trás (p.37) e se esqueceu (p.52) mas se quer, mesmo assim, rememorar para  dissecar porque “são as coisas que ficam por dizer que fazem continuar”(p.43). Um amor que, não raro, é “um nome enorme / escrito no  corpo”(p.27) e que , gritado, nada mais despoleta que  o “silêncio sepulcral” de quem se dedicou a outro mundo (p.58)... que sem ele “o mundo sabe a azul”(p.33)


Mas há carinho também, neste amor. E dádiva. Inevitáveis. Até porque hoje faz anos (p.60). E há saudade em todo este memorial. Saudade das viagens conjuntas pelo corpo, que o tu trouxe “de volta o prazer dos sentimentos” e o renascer do riso “nesta estrada sem fim” (p.17). Saudades da boémia e dos aromas da madrugada (p.34) para lhe “sentir cada recanto do corpo e cada linha do rosto (...) e voar”(p.44)


Contudo, neste vaivém das paixões no litoral do amor, há um caminho solit(d)ário onde se aguarda o amante, em segredo apenas dos dois, “que as tuas palavras são também as minhas”(p.50) ... mas um segredo que continuará “ a ser a razão de uma espera / para nada” (p.53), “que o silêncio é todo teu”(p.50). Nunca a areia guardará eternamente o mar. Nunca o oceano deixará infinitamente de a beijar. Jamais Orfeu repossuirá Eurídice.


Nestes solilóquios se entendem as praias e as águas que as banham.


E assim se constroem  todos os rituais do mar.


E do amar.


 


... na subfície do eu


 


Toda esta itinerância amorosa  dos verdes anos se inscreve na busca do mim. Quem é este eu? E este mim?


“É em mim que vejo o mundo”(p.27)


O eu, “inconsciente vulnerável” que mente (p.31), ora espera “calmamente a descoberta de mim”(p.48), ora procura encontrar-se no vazio (p.41) enquanto fuma “o mais triste dos cigarros” (p.64).


O “eu queria morrer sem avisar ninguém” (p. 40)... que “ninguém acende uma luz”.


 


... na busca de Deus


 


“Não acredito em deuses / porque não os conheço” (p.71) e porque  “sempre neguei esses deuses em que todos acreditam” (p.52). Mas “é na descrença total que apelo a um Deus / que me levante do chão” (p.1).


Inquieta-vos a presença obcecante da ausência do divino. Perturba-vos o chão vazio de deuses.


A dor, a morte, a finitude aportam-nos insegurança e o desejo antiquíssimo de um ventre, de uma mátria, de um Deus. Desconhecido? Talvez. Mas magmático. Necessário. Nosso. O nosso deus que buscamos no amor : “ tu talvez sejas os deuses que eu criei” (p.52) e por quem espero, e, porque  “ a espera é a única saída”,  “aqui estou” (p.47).


 


4.


palavras...  abre e fecha com Deus. Um Deus que se busca, se aguarda. Se deseja. E por isso mesmo se nega. Quem quer construir-se sobre verdades alheias? Quem acredita em castelos de areia?


Importa negar as imposições do clã, para sejamos nós quem encontra o porto. O cais. Construídos na evidência.


Que o nosso mundo tem a dimensão das nossas vivências.


Das nossas  palavras... 


 


José Luis Carvalhido da Ponte


Bissau, 23 de Novembro, 2001








[1]  Esquadra da polícia, nos arredores de Bissau



[2] idosos (crioulo)



[3]  Choro (crioulo). Cerimónia de recordação de um familiar que se perdeu



[4]  Instrumento musical

Badanas
 
Contra capa
 

 

 
 
     
Voltar