Cinco Motes para um Memorial / Separata do t. 16 dos Cadernos Vianenses

de: José Luis Carvalhido da PONTE

   
           
     
Excertos

5. - Era manhã do dia 25 de Abril de 1974. Não recordo do tempo. Devia estar bom porque eu estava feliz. O primeiro comboio da manhã rumava a Valença. Eu ia namorar e, como sempre, ia cedo, habituado aos horários da guerra de onde regressara havia 23 dias. Como os prazeres do encontro estavam marcados para depois do almoço, sentei-me no café Portugal, penso que assim se chamava, no interior da cidadela, disposto a ler um livro e a ouvir um pouco de música. Seriam umas nove horas e trinta minutos. Mais ou menos. A TV estava ligada e o locutor falava do meu país. Espera lá! Que diz ele? Que houve um golpe de estado?  Onde? Olha, em Portugal! Mas eu não vi! Nem ouvi! Não pode ser verdade! Espera! É a TV espanhola! E era verdade. Sim senhor. E havia imagens. E gritos de euforia. O dono do café sorria. Amarelo. Esse ainda o recordo. Eu perplexei-me. Rio ou não? E se isto é mentira e o dono do café é da PIDE? Paguei a cerveja e saí. A vila estava nervosa. Entrei noutro café. As informações repentinavam-se. A pouco e pouco íamos perdendo o medo de perguntar. E os rádios avolumavam as notícias. Que tudo começara  à meia-noite com o Zeca a cantar a Grândola, Vila Morena. Que o Salgueiro Maia prendera o Tomás e o Marcelo. Que. Não. Não prendera. Ia prender. Eram quase 12 horas. Desatei a percorrer todas as ruas da velha urbe. Ia feliz. Começava a não ter mesmo medo. E chorava. Alguém me perguntou se precisava de ajuda. Não. Obrigado. Agora já não. Agora já posso brincar no adro. Pode brincar onde? No adro?  Sim. Ah, desculpe. É que houve uma revolução. A senhora afastou-se a desditar-me e eu continuei a responder-lhe. Agora já posso brincar no adro. E o meu pai já pode ler todos os murros escritos nos muros. E o Reguengo já pode falar. E o mandinga pode descansar na paz dos oceanos. E o coronel já pode ir para o raio que o parta. E o medo é uma merda. Agora já não tenho medo.

         E continuei a chorar. E lembrei a cidade de magia do sonho do ruço de màpêlo.

         E fui namorar. Que para isso tinha ido a Valença.

         E a revolução? Seguiria dentro de minutos!

 
 
     
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