Pero do Campo Tourinho - entre o sucesso e a desgraça

de: António Matos REIS

   
           
     
Excertos

"1. As origens vianesas"


"1.1- Pero do Campo, como indica o próprio nome que adoptou, morava, em 1517, no arrabalde do Campo do Forno, segundo o testemunho do rol da finta para a construção da ponte sobre o Guadiana. O Campo do Forno era a praça resultante da expansão da vila para fora das muralhas, no século XV, na direcção do norte, praça que, logo no início do século XVI, com a erecção dos novos Paços do Concelho, seguida pela da Misericórdia, e pela da fonte de João Lopes o Velho, se tornaria o centro da povoação, mantendo esse estatuto até meados do século XX. No arrabalde do Campo do Forno, englobava-se, em 1517, um conjunto de arruamentos incipientes que estavam a formar-se ao redor dessa praça e se consolidarão nas décadas seguintes.


O apelido "do Campo" está relacionado com este espaço, onde Pero residia, como regista a mencionada finta lançada em 1517. Outros vianenses com o nome de Pero ou Pedro, viviam no mesmo arrabalde, e o facto de entre essa dúzia e meia de moradores apenas este se chamar "do Campo", para o distinguir de outros habitantes da povoação, estará relacionado com o prestígio de que gozava no seu meio social.


No depoimento que mais tarde fará perante a Inquisição de Lisboa, Pero do Campo dirá que, antes de partir para o Brasil, "estava em Viana do Castelo homde era morador e hy nacera e fora bautizado".


1.2- Além deste apelido, Pero do Campo adoptou outro, um topoantropónimo que tem a ver com a origem geográfica dos seus antepassados: Tourinho.


Tourinho quer dizer originário de Tourim, nome antigo de uma freguesia do termo de Viana, que hoje se chama Amonde e fica situada nas margens do rio Âncora. Era, no início do século XVI, habitada por cerca de duas dezenas de famílias modestas, na sua totalidade agricultores. Como noutras freguesias do Minho em todos os tempos, aqueles que se não acomodavam a esta situação deixavam a terra natal para ir em busca de fortuna noutros espaços.


Quando Pero do Campo nasceu, já outros membros da mesma família, ou, pelo menos, da mesma origem, viviam na vila de Viana da Foz do Lima. Havia, com efeito, uma rua do Tourinho - e esta designação referia-se a um morador actual ou passado que, por qualquer razão, se tornara conhecido, mas que não se devia identificar com este, pois a rua já existia em 1517, quando o futuro Capitão Donatário, ainda jovem, habitava no Campo do Forno. Outras pessoas com o apelido Tourinho moravam, na segunda década do século XVI, na vila de Viana e em Carreço, e em meados do século, noutras freguesias do concelho. Entre eles sobressai Gonçalo Peres Tourinho, cidadão abastado, morador na rua de S. Sebastião (actualmente Manuel Espregueira), incluído entre as seis dezenas de vianeses que se achavam com recursos suficientes para contribuir voluntariamente com um empréstimo suplementar, em resposta ao pedido régio formulado nas cortes de Almeirim, de 1544.


1.3-Pero do Campo, desde cedo, teve como horizonte a vastidão dos mares longínquos. Ao findar a segunda década do século XVI, era membro destacado da Irmandade dos Mareantes de Viana, com João Vaz Caracol, Martim Gonçalves, Afonso do Porto, João do Porto, Estêvão Afonso, Fernão do Porto, Rodrigo Álvares, Vicente Afonso, João Álvares de Darque e João Fernandes. Aparece mencionado como oficial da Misericórdia no rol da finta para a ponte sobre o Guadiana. Mas a irmandade da Misericórdia de Viana, tal como a conheceremos posteriormente, ainda não tinha sido criada e sê-lo-ia apenas dali a quatro anos. A Irmandade dos Mareantes dirigia a sua acção principalmente aos homens do mar e às suas famílias, mas, pelo menos na segunda década do século XVI, alargou-a a todos os necessitados que não tivessem quem se ocupasse deles e, em consequência, reivindicou os mesmos privilégios concedidos às Misericórdias, entre eles, neste caso, o de os seus oficiais serem dispensados de contribuir para a obra acima referida. Em 1521, como a mesa da confraria rejeitasse a tentativa de ingerência nos seus destinos, feita, em nome do poder central, pelo Juiz de Fora, este ordenou a erecção da Confraria da Misericórdia, que passava a ser a única a fruir dos privilégios outorgados às suas congéneres.


Assim se compreende que, embora, em 1517, ainda não tivesse sido criada a Misericórdia de Viana, fossem mencionados no rol os onze "oficiais da Misericórdia", que o eram efectivamente da Confraria do Mareantes. Entre esses onze oficiais, contava-se Pero do Campo, o mareante que vivia no arrabalde do Campo do Forno.


1.4- Em 15 de Outubro de 1519, documenta-se a sua actividade como proprietário, armador e mestre de uma caravela que chegou ao Porto de Caminha, vinda da Flandres, com um carregamento de panos. Se para ser dono de uma embarcação, era necessário dispor de recursos bastantes para a adquirir, e se era também indispensável possuir razoáveis cabedais para investir na comprade mercadorias, o facto de ser mestre, lugar de topo na hierarquia profissional, pressupõe, atrás de si, um razoável tirocínio nas fainas marítimas.


Como sucederia com a maior parte dos mareantes de Viana, as suas viagens de negócios orientar-se-iam na direcção dos portos do norte da Europa. Nestas viagens ou noutras, Pero do Campo terá prestado grandes serviços ao Rei de Portugal, embora se ignorem os pormenores, por não se conhecerem referências documentais, especialmente nos arquivos de Viana. É possível que tenha participado nas explorações do Noroeste Atlântico, após a expedição de João Álvares Fagundes. Também é provável que tenha desempenhado um papel importante no transporte das especiarias orientais e de outras mercadorias ultramarinas, de Lisboa para Antuérpia e Amsterdão. Talvez o contacto com os movimentos religiosos do norte da Europa explique algumas das liberdades de linguagem que um dia lhe tornarão a vida amarga. Também não é impossível que tenha feito alguma viagem às terras de Vera Cruz para encher a sua caravela de pau-brasil ou que até participasse nalguma das armadas que por ordem de El-Rei periodicamente iam patrulhar as costas do Brasil.


Foram certmente os serviços prestados e as qualidades manifestadas no desempenho dessas missões que levaram D. João III a descobrir nele a pessoa indicada para lhe confiar uma das novas capitanias em que, para promover a sua defesa e desenvolvimento, decidiu repartir as terras de Vera Cruz. O próprio Rei, na Carta de Doação, sublinhou que a atribuição foi espontânea e teve em consideração os méritos de Pero do Campo, sem que houvesse qualquer petição ou requerimento de candidatura: «avemdo eu respeito aos serviços que tenho recebido e ao diante espero de receber de Pero do Campo Tourinho e por folgar de lhe fazer mercê de meu próprio moto e certa cyência poder reall e ausoluto sem mo elle pedir nem outrem por elle ey por bem e me praz de lhe fazer como de feito per esta presente carta faço mercê e inrevogável doaçam amtre vivos valedoyra deste dia pera todo sempre de juro e derdade pera elle e todos seus filhos netos erdeiros e sobcesores que apos elle vyerem asy descemdentes como trasvesaes e colleteraes segundo adiante yra decrarado de cyncoemta legoas de teraa na dita costa do Brasil»".

 
 
     
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