Primeiro Foral de Barcelos (O)

de: António Matos REIS

   
           
     
Excertos
4- Obrigações e direitos

Barcelos, no século XII, enquadra-se no grupo dos burgos e póvoas, ou, mais exactamente, na segunda categoria. Os burgos eram aglomerados urbanos, de pequeno alfoz territorial, cujos moradores se dedicavam exclusiva ou quase exclusivamente ao comércio e aos mesteres. Fora dos arruamentos desses aglomerados, apenas lhes era normalmente consentido que apascentassem as bestas de carga, isentando-os do pagamento do montádigo. Classificamos como póvoas aqueles aglomerados em que a presença e a actividade dos burgueses é marcante, mas continua a ter uma expressão significativa o sector primário, designadamente a agricultura e, nalguns casos, a pesca, o que supõe uma amplitude maior do seu termo.
Nos burgos e póvoas do século XII, o imposto de base é a taxa fixa de 1 soldo (ou 12 dinheiros), por cada casa, no primeiro caso, e de metade, isto é, de 6 soldos, no segundo, com redução no caso das viúvas. É assim em Barcelos, onde, por altura das colheitas (S. Miguel) se pagava o tributo de 12 soldos, ou de 6, quando o chefe de família era uma viúva.

Como já referimos, o documento foi considerado um indículo, isto é, como um resumo ou apontamento sintético e não como um diploma acabado, em forma definitiva. Se este alguma vez existiu, já em 1218, na altura das confirmações, se tinha perdido. Admite-se também que, elaborado apressadamente por ocasião de uma passagem do Rei na localidade, nunca tenha merecido uma redacção mais aperfeiçoada. Como já verificámos em relação à data, as características do documento estão na origem de alguns problemas de interpretação, nomeadamente das cláusulas atinentes ao foro jurídico, penal e fiscal.
O Rei estabelece a respeito dos moradores: “do illis fórum ut habeant honorem Bracare et pectent decimam de calumpnia Bracare et decimam de toto labore”. Esta passagem tem sido interpretada, em nosso entender, como se dissesse: “Dou-lhes por foro a (mesma) honra de Braga e que paguem a décima da coima de Braga e a décima de todo o trabalho”. Com efeito, não parece lógico interpretar o foral como se ele determinasse que os vizinhos de Barcelos deviam fazer honra ou prestar homenagem a Braga ou ao seu Arcebispo, e ainda pagar-lhe os dízimos das coimas e dos rendimentos do trabalho.
Não seria coerente que, ao conceder a um município um foral cuja finalidade era a de o libertar de subserviências dominiais, paradoxalmente estivesse o Rei a determiná-las, cerceando os seus próprios poderes e a autonomia do município, e isso não obstante as melhores relações que pudesse ter com o Arcebispo de Braga. Por outro lado, nos arquivos da Sé de Braga, não consta da existência de qualquer registo dessa dádiva nem de qualquer referência à liquidação desses direitos ou à sua reivindicação. Normalmente, mesmo nas instituições eclesiásticas, é mais fácil encontrar referência a um direito no arquivo dos beneficiados do que no daqueles para quem ele se transformava num encargo.
Conhecemos outro foral, concedido a uma localidade relativamente próxima, Vila Nova de Famalicão, em que deparamos com cláusulas semelhantes. Nele se estabelece, com efeito
- quanto às coimas: que “non pectent nisi tres calumpnias illas que sunt asignate hominibus d’Ospitalis”, i. e., que não paguem senão aquelas três coimas que estão estipuladas para os homens da Ordem do Hospital.
- quanto às bestas de carga: “quod quicumque ibi habuerit bestiam vel bestias habeant illas per fórum Vimaranes, et non faciant illis tortum nec forciam super illas”, i. e., quem possuir animal ou animais de carga, tenha-os segundo o foral de Guimarães.
- e quanto às portagens: “et detis portagium quomodo dant in Sancto Petro de Ratis”, i. e., pagueis portagem como pagam os de S. Pedro de Rates.
Trata-se de referências em termos comparativos, que têm como finalidade, diplomaticamente, evitar a sua descrição exaustiva e mais longa no documento, e socialmente, estabelecer uma igualdade de tratamento para cidadãos que habitavam em localidades vizinhas.
No caso de Barcelos, as disposições do foral quererão simplesmente dizer o seguinte:
- os moradores pagarão uma décima da(s) coima(s) (decimam de calumpnia) igual à que pagam os moradores de Braga;
- os moradores pagarão a décima (de todos os rendimentos) do trabalho.
Estas importâncias seriam pagas ao Rei, embora cobradas pelo concelho, que pouco mais tarde as passaria a guardar para si, em troca de um censo anual que entregava ao monarca, como testemunham as inquirições de 1220.

A inquirição de D. Afonso II menciona, com efeito, os vários impostos a que os moradores são obrigados, referindo em último lugar os tributos correspondentes à administração da justiça e especialmente às coimas devidas pelas infracções e delitos, que são aquelas a propósito das quais no foral se faz referência a Braga. Ora logo a seguir diz-se: “Et modo est villa in renda pro CCV morabitinos”. Esta renda substituía os vários tributos locais, não excluindo vocem et calumpniam secundum suam cartam, que, ainda por cima, era a última obrigação a que a inquirição acabava de fazer referência.
Curiosamente, na inquirição de D. Afonso III não se faz menção desta renda, mas apenas dos tributos que ela substituía. Afigura-se, no entanto, oportuno salientar que, ao referir as coimas, embora numa linguagem que se pode considerar intermédia entre o latim medieval e a incipiente língua portuguesa, o testo da inquirição não admitirá dúvidas quando regista: “et pectam decima de caomia de Bracara”, expressão que de nenhuma forma pode traduzir um dativo e por conseguinte um pagamento de coimas à Sé de Braga.
Estas cláusulas remetem-nos para um momento anterior à outorga definitiva do foral, que corresponde à fase da informação prévia e da negociação, em que não era raro empregar termos comparativos, que por vezes deixaram a sua marca nos textos dos documentos: a muitas localidades foi dado o foral “de Salamanca”, a outras o “de Ávila”, o “da Guarda”, etc.; os habitantes de Melgaço pediram e obtiveram do Rei a concessão do foro “de Ribadavia”, assim como aos do Porto o Bispo outorgará “tam bonos foros quales habent in Sancto Facundo”.
 
 
     
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