Carta aberta à amiga Adelaide Graça
(notas avulsas, em jeito de incompleto prefácio)
Cara amiga: Pediste-me um texto que abrisse o teu livro sem chaves nem segredos. Que seria fácil. Que eu já tinha os teus anteriores. Tinha, não tinha? Então, que eu escrevesse um prefácio a este grito de afectos. E eu, que tenho os teus livros, optei por os não acordar. E não os reli. Que um texto tem de valer por si. Que um filho cria caminhos com encruzilhadas que o pai não percorre.
Ora o teu livro, Adelaide, é já dono de seu percurso. Pudera, não? Filho da madureza, traz ao fórum outras nortadas e seria desrespeitar-lhe a epígrafe enfrentá-las: "não perturbemos o silêncio. / Passeemo-nos nele sem calcarmos / demasiado o chão". O barulho de outros chãos pisados, de outras memórias que as palavras carregam, é ensurdecedor para a solidão da escrita, para "os caminhos do silêncio / que são os da poesia" . E tu não queres que esventremos, por completo, o chão das palavras, das coisas, dos afectos. De ti. O chão da tua caminhada.
Nem eu! Que a poesia degusta-se. Tão apenas. E o ADN? O ADN? Ah, pois, o ADN. Oh minha cara Adelaide Graça: aos críticos literários, médicos-legistas do verbo, competirão os rotineiros exercícios do público esquartejar do tecido em busca de esconsos fonemas e semas. A mim bastará o fruir. A mim, poeta amiga, apetece-me, como a ti, "parar nos sítios / que me olham, / que me entendem, / olhar outros céus, / entrar noutros mundos, / sugar a raiz das coisas" . Assinzinho. Tão-só. Que tudo o resto me sabe a devassa.
Eis porque eu, que não sou homem de incumprimentos, ordenei-me: não se polua, pois, o silêncio.
Mas há sempre algumas vozes nas palavras que o poeta não apagará.
Adentrei-me um pouco mais e o primeiro poema, logo-logo me advertiu, sem chaves nem segredos, que o livro é, antes de mais, um livro " de afectos que emolduram afectos" , afectos que se enraízam na nossa memória e circunstância, " neste chão de terra, de rio, de mar / onde o rasto das vozes se eterniza".
Por isso buscas despersonalizar-te, esvaziar a mente, embora reconheças não ser "fácil este esvaziar" na escrita de uma " poesia livre desnudada (…) pois só nós que somos o rasto(…) e estamos nos afectos " , só nós saberemos escutar as vozes do silêncio.
Mas nós, quem? Os poetas? Os amantes? Nós, os que vivemos e os que já viveram, que ninguém é sozinho por condição. O chão da nossa caminhada resulta das nossas leituras da circunstância. O rasto resulta do caminho construído, pedra sobre pedra, palavra sobre palavra. Como pegadas na areia. A poesia, filha dos nossos afectos, resulta de todo o nosso corpo. A poesia é, por isso mesmo, puro erotismo.
Mas o rasto de cada um é de cada um e dos outros também. E o teu, amiga, é de ti e de um tu omnipresente em todo o chão do teu caminhar. Um tu que te faz de novo sonhar quando te fala de afectos. Depois do silêncio e dos afectos, descobri a tua peregrinação: "nunca saberás o quanto desejei ter-te / na alcova dos meus braços, / no lençol da minha pele, / na peregrinação da minha nudez". Andarilha de cheiros e sabores , percorres o desdobar dos dias " com a naturalidade de um novelo que desliza pelo chão da vida" e nas coisas saboreias o beijo quente do TU que será mar, ave, voo de outros voos "na libido encarcerada / no tombar da vida" que, não raro, nos lembra uma montanha russa onde o nós se cumpre na "cachoeira do existir" . Escreves como quem vive nesse jogo de fúrias e medos onde a corrida nos iça ao topo do mundo para loguinho nos anunciar a adrenalina do desfiladeiro. Na montanha russa, as carruagens sucedem-se, não se ladeiam ou se encontram. E circulam na segurança dos carris. Assim a tua escrita e os afectos deste livro. És peregrina do espaço, andarilha do tempo, caminheira dos corpos e do amor. E quantos exemplos, amiga poeta: "levanto-me deste chão / (…) nesta viagem que se nos oferece maga e tranquila" ; " gemem as pedras desencontradas / nos caminhos gastos e carcomidos / entremeadas de passos andados / de pegadas escritas / no deambular do tempo" ; " Passeiam-se os dedos pelo beijo colado / nos meus lábios. / Há marcas meigas silenciadas / que tu e eu guardamos no seio do tempo" ; "quiseram que fossem rua os caminhos / da minha aldeia. / Cheiram a mosto agora que o Outono chega manso" ; "Quente e fervilhante a tarde, despe-se no espreguiçar do momento. / A viagem pelo tempo oferece-se saciada nos recônditos / da mordomia ancestral" ; "Este é nosso mar! / O mar de Moledo, de Caminha, / de Bayona, de Vigo, / de Carreço, de Afife, de Âncora".
Todo este peregrinar na busca do silêncio e no saborear dos afectos nos fala dos teus encontros e desencontros e, sem chaves nem segredos, se é um livro de afectos é um livro de amor.
O teu percurso de peregrina na busca do silêncio e dos afectos, justifica-se pela busca do outro, do que faz com que renasças cada dia, cada momento em que te acaricia. Mas sabes o que me é mais enternecedor? É que a circunstância, que para tantos é um árido despovoadro está, para ti, grávida de afectos. O tu, o teu, o te, o nosso, o nós é um outro, um tu imanente ao mundo, às coisas: ao rio, à fonte, ao mar, à árvore, à aragem, à ave, ao voo da ave, à cidade, ao campo, à estrada, à essência de vinagre, aos gatos que "te vigiam os passos".
O teu nós construiu-se, estação-a-estação, no "espaço imensurável onde moram os sonhos", embora, às vezes, o amante me pareça um tu já longínquo pois " emerge do tempo o crepúsculo do teu amor / em mim"; talvez por isso fales de um outro inventado: "continuo a não saber quem és. / Inventei-te. / És um projecto do meu amor. /Amo-te". Eis porque, aqui e ali, vislumbro alguma nostalgia, alguma tristeza: "nunca saberás o quanto desejei", "não te encontro em lado algum meu amor, / apenas dentro de mim como barco ancorado / num pedaço de mar sem maré. / Maré vaza. Maresia de ti".
Como é, amiga? Sabes o sabor e o cheiro das coisas, tão-tão? Que receias, pois? Que ele não seja o que pensas? Mas se lhe sabes o corpo? E o respirar? Mas se vive em ti, maresia de carícias? Pois! Estás cansada das " pedras gastas e desencontradas" e necessitas do outro para calcorrear a ladeira da montanha russa, contigo, na tua carruagem, porque a vida é uma canção que sozinha não sabes cantar. E achas que nós sabemos? Eu sei que necessitas dos encontros, que eles te são necessários. Eu sei que na "Páscoa dos corpos" e dos sonhos encontramos a divina tranquilidade. Lembraste-me Unamuno e Florbela. Lembrei a necessidade do reencontro do eu com o mim.
Sabes, amiga: chegamos ao mar alto onde a fúria da rebentação se sente de outro jeito. Serenamos "com o estralejar da lareira", a "quentura da água" e "a poesia arrebatadora". Eis porque me não admirou a tua segurança e entendi o nem sempre acederes ao tu para ver a lua . Eis porque me não espantou a tua certeza de que procuras, mas nunca te perdes. Sempre te reencontras. E aqui, outra gostosura: onde te reencontras? Na árvore que baloiça ao vento, no vento que te desnuda e te faz entender a matura idade. Já não te magoam os desencontros. Agora, mãe, mulher e amante, pertença de todo o mundo, permites que a poesia aconteça, que a vida continue, que os afectos floresçam, que o silêncio engravide o tempo de esperança. Agora é o outro que te inunda, e deixas que o faça. Assim. E depois és ele, um ele universal, um ele desprotegido, um ele salvador e juntos caminhareis, sossegadamente, caminhos de antiquíssimos rituais.
Gostei do teu livro, poeta. O telefone tocou. Eras tu a pedir-me o preguiçoso texto. Fica, pois, por aqui, esta carta, já longa e plena de notas avulsas.
Um beijo amigo e uma ideia de Ricardo Reis:
" (...) não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente e sem desassossegos grandes ".
Meadela, 6 de Junho de 2005 José Luis Carvalhido da Ponte |