O terceiro livro de Adelaide Graça continua na senda - ascendente — dos dois anteriores. O tema continua a ser o amor, o amor na primeira pessoa e na pessoa de uma mulher, e como neles descrito com simplicidade, elegância e a delicadeza com que só os poetas sabem amar.
Poesias escritas parece que ao correr da emoção, as desta trilogia são todas elas líricas, todas marcadas pela autenticidade confessional e todas elas nos contam uma história de amor. O lirismo e a confessionalidade, porém, não se ficam pela enunciação: não há narrativa, nem autobiografia e muito menos explanação teórica. O que aqui temos é o amor vivido e comunicado directamente, com o coração nas mãos a fazer de caneta. Há urna história de amor que corre como hipotexto que os poemas desvelam, tão frágil é a cortina que a linguagem interpõe entre a poeta e o leitor. E o que se comunica são confidências, interrogações, mas também apelos. A poeta, porém, não se dirige a nós. Como no velho estilo de Bernardim, o leitor vê-se atrás de uma cortina a que as palavras, em vez de conferirem, retiram transparência, e assim podemos assistir a cenas de amor, apelos de amor, desejos de amor.
O livro é essencialmente dialógico. O amante é um «tu» com quem a poeta fala, um «a ti» a quem desinibidamente se dirige, julgando, se calhar, que as palavras nos não permitem ver os beijos desejados, as carícias sonhadas, o enlaçamento dos corpos ansiado, os rasgões na alma e nas convenções. Mas as palavras, ao desvelarem a delicadeza deste amor feminino também lhe disfarçam a natural humanidade: «tu e eu:/ o mesmo corpo; / o mesmo sorriso».
O primeiro «episódio» do hipotexto é um amor acabado, tornado mutuamente frio («frio despido», «frio que vem de nós»), que deixou o «vão da ausência», como ressalta da primeira poesia, que funciona como uma espécie de sumário do livro. E, de facto, as imagens que se sucedem e exprimem a ausência gerada são todas expressão do vazio exterior e interior: «dizeres sufocados», «paredes nuas de ti» numa «cabana inventada», «mensagens por decifrar», «silêncio que faz silêncio», «silêncio dos meus braços», «pedras que se despem», «lareira sem chama», «poema sufocado». E as metáforas disfóricas sucedem-se, com flores murchas, «corpo sem rosto», esmorecimentos.
Mas, porque as palavras são, como a poeta diz, «transparentes» quando «se despem», elas não podem escamotear a «fonte de desejo» que ela continua a ser, nem deixar de recordar um «sorriso esquecido», de levantar novas hipóteses, a «incerteza duma próxima vez».
E é então que surge a luz nos «olhos facetados do silêncio», retorna o lume à lareira. Mas o amor que agora nos aparece é um amor diáfano, invisível e indizível. É silêncio que se ouve, amor impalpável («entras em mim como o ar»), amor a que só a poesia confere vida: «Não quero mais que entres em mim // Quero pensar-te». E o ar que traz o amor também traz a música, com a «dança que a brisa tange».
O amor, neste segundo momento, realiza-se nas coisas e exprime-se, por isso, por metáforas e sinestesias: «carícia aveludada», «beijos como brisa», o «regaço das ondas», o impossível com que já os profetas sonharam: «rimo-nos como riso dos animais». Não mais há dor: o que sangra são ideais. Sente-se o cheiro do luar, o «cheiro que vem das rochas» e a «cor da música», vencem—se os obstáculos («não se apaga o Sol / só porque as nuvens se intrometem»), «brilha a pele das pedras», alegra-nos a «luz insistente / no clarear do sombrio». E as imagens são agora luminosas. Adelaide Graça, se é poeta do vazio, é-o também da luz, da luz discreta da luminosidade atmosférica, onde reluzem sorrisos, «jeitos / e carícias», o «perfume de jacarandá». As lágrimas, que também as há, essas, brilham na «berma do olhar».
E o livro entra na sua terceira parte, com um novo amor, que é para já um desejo, um «sonho / a entrar no silêncio da manhã» de um «Fevereiro galanteador». E com este «despertar do dia», noite vencida pelo luar, renasce o mesmo amor calmo de amadurecido, com o mundo visto nos olhos do homem amado, o «brilhar do encantamento», a «maciez dos momentos». E tudo brilha de um brilho discreto: as lágrimas na berma do olhar, as gotas de água, as ondas que se recolhem no mole regaço da areia, o «sorriso do orvalho», um sol débil que não bate de chapa nem define perfis, mas que «borda […] o rosto» dos amantes. E na «frescura do amanhecer», quando o orvalho sorri, também flameja o peito masculino marejado do suor de uma noite de entrega.
Adelaide Graça é uma poeta do amor, das mais sinceras e expressivas, que sabe semear a lua em cada estrofe, para nós a colhermos como aurora no prazer repousado da leitura.
Viana do Castelo, 2002 Maio 08
ALBERTO A. ABREU
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