TEATROS inclui três peças com cariz simultaneamente didáctico e lúdico.
TOCA, NÃO TOCA E VOLTA A TOCAR, peça em 8 quadros, um prólogo e um epílogo, foi criada a partir da peça de António Torrado Flauta sem Mágica. Segundo o autor, «é uma peça essencialmente ecológica (...) vocacionada para os mais novos.(...)aborda a temática da poluição sonora versus fruição musical, da poluição do ar versus ar puro, da polifonia versus monotonia (...)».
JARDIM CELESTE, opereta em 2 actos na qual, a propósito da inauguração de um chafariz e de um urinol se desenrola uma mordaz crítica social.
Na peça MARESIA, ode cómico-trágico-marítima em 2 actos, o pequeno Chicharrinho segue com curiosidade e interesse as histórias das aventuras do Avô Zé Chicharro e do Faroleiro Ti Jão que retratam vários episódios da vida de uma comunidade piscatória.
Excerto de TOCA, NÃO TOCA E VOLTA A TOCAR
1.° QUADRO
A Banda tocando com brio, sob a direcção do MAESTRO PALHETA. Músicos da Banda: CELESTINO da flauta, MARIA BENAMOR do tambor (vestida de majorette), MOURATO dos pratos e mais alguns executantes (clarinete, saxofone, trompete, acordeão, etc.)Os músicos, diante das respectivas partituras, esmeram-se na execução. Grande exuberância musical. Os músicos no ensaio podem estar fardados ou não, a não ser Maria Benamor, vestida de majorette. A banda toca uma peça de música completa. No início da segunda peça ao fundo do palco vão começar a ser montados diversos praticáveis que vão sugerir uma fábrica. Esta instalação vai ser feita pelos personagens CINZENTÕES. A meio mais ou menos da segunda peça, a banda começa a desafinar, mas ainda consegue terminar a música. No início da terceira peça, o Maestro Palheta vai dar entrada à flauta. Dá entrada mas o flautista não corresponde. Interrupção. Os pratos tocam a destempo.
MAESTRO PALHETA - Alto, alto e mais alto. Então essa flauta vem ou não vem? Outra vez! Do princípio. (pausa) Atenção! Um e dois e... Arrancar!
(Arranca de novo a música. Para dar entrada à flauta, o Maestro Palheta imprime mais ênfase ao gesto. O flautista esforça-se, mas não corresponde ao tempo. Interrupção. Os pratos, de novo, tocam a destempo. Outras estridências. Os músicos estão encabulados)
MAESTRO PALHETA - (batendo furiosamente, com a batuta na estante) lrra, irra e mais irra! Uma escorregadela ainda vá, mas duas e seguidas... já não tem explicação. Toma cuidado Celestino, que da próxima não perdoo. Atenção! Um e dois e... Arrancar!
(Arranca de novo a música. Ao chegar ao tempo da flauta, interrupção. O dos pratos suspende o gesto, no último instante)
MAESTRO - (batendo desesperadamente com a batuta, que pode partir-se...) Irra, irra e mais irra! Mas o que é que se passa com essa maldita flauta? Não toca? Está entupida ou quê?
CELESTINO DA FLAUTA - Está entupida.
MAESTRO - O que é que eu ouvi? A flauta está entupida? O que queres dizer com isso?
CELESTINO - Por mais que sopre, a flauta não toca.
MAESTRO - Essa é muita boa. Dá-ma cá. (Celestino entrega-lhe a flauta. Maestro sopra em vão) Pois não. Realmente, a flauta não toca. Que lhe terá dado?
MARIA BENAMOR - Há outra flauta no vestiário.., na primeira gaveta a contar de cima, à esquerda de quem entra.
MAESTRO - (para Celestino) Vai buscá-la. Despacha-te. Anda. (Celestino sai) Entretanto, nós vamos ensaiar para a frente, a partir do acordeão, segunda página ao alto. Entra o acordeão, acompanha-o o trompete e, depois, todos à uma... Estão a ver? Atenção. (empunhando a flauta como se fosse a batuta) Um e dois e... Arrancar!
(O do acordeão esforça-se. Os outros instrumentos olham-no. Incitam-no. Não sai som.)
MAESTRO - Irra e mais irra e mais irra, vezes cinco. Que temos agora?
O DO ACORDEÃO - Está entupido. Não toca. Até me doem os braços de tanto dar aos foles.
O DA TROMPETE - O meu também não toca. Até me doem os ouvidos de tanto soprar.
(Mais instrumentais se queixam dos ouvidos)
CELESTINO (regressando) - A flauta que estava guardada é igual à outra. Não toca.
O DA TROMPETE - (experimentando-a e sacudindo-a) Está inutilizada. Não dá som.
O DO SAXOFONE - Nada de nada. Nem um suspiro. Não toca.
MAESTRO - Irra e mais irra e mais irra, vezes trinta. Que diacho se está a passar na nossa banda? Perderam todos o fôlego? Os instrumentos ganharam moléstia? Na Banda da Sociedade Filarmónica Harmonia e Progresso nunca tal se viu. Tenho vinte e cinco anos - vinte e cinco anos! - de regência de bandas e é a primeira vez que os músicos se recusam a tocar.
VÁRIOS (em coro desafinado) - A culpa não é nossa.
CELESTINO (aflito) - Maestro Palheta, Maestro Palheta! Olhe para os papéis, as partituras... As notas estão todas a desaparecer. Não se aguentam nas linhas.
MAESTRO (trocista) - O quê? Não se aguentam nas linhas? Caíram para o chão, foi?
MARIA BENAMOR - É verdade Maestro Palheta. As notas estão a desaparecer.
O DA TROMPETE - Apagaram-se!
O DO ACORDEÃO - Fugiram!
CELESTINO - A música está com doença!
O DO CLARINETE - Deu-lhe a peste!
MOURATO DOS PRATOS - E a peste pega-se. (deixa cair os pratos ruidosamente)
O DO ACORDEÃO - Toca a fugir.
O DO SAXOFONE - Salve-se quem puder!!!
(Vários gritam, fugindo, atordoados e ainda queixando-se dos ouvidos. Caem estantes, instrumentos e cadeiras)
MAESTRO PALHETA - A Banda da Sociedade Filantrópica, Columbófila e Filarmónica Harmonia e Progresso encerrou, provisoriamente, as suas actividades. (noutro tom) Irra e mais irra e mais irra, vezes cem. Irra, irra, irra, irra, irraaaaaaaa. (sai)
Excerto de MARESIA
CHICHARRINHO - Avô... Avô... Avô... (irrompendo pela cena) Avô... (depara com o avô no cesto da gávea) Ahh... estás ai avô. Posso ir para a tua beira? (gesto afirmativo do avô) Obrigado avô. (miúdo trepa para a gávea) Cá por riba está um frio de rachar. (gesto de concordância do avô) Avô, podes contar-me mais algumas histórias ou ensinar-me coisas sobre o mar? (gesto afirmativo do avô) Conta lá então, avôzinho.
(Silêncio grande e confrangedor. Avô pigarreia e começa)
ZE CHICHARRO - Meu querido netinho; a última história que te contei há dias atrás, tinha sido sobre uns antepassados nossos que se tinham debatido com um gigante, até conseguirem dobrar o cabo das Tormentas. Passou-se isso no tempo de El Rei D. João II. Ainda te lembras como se chamava o navegador que ousou tal feito?
CHICHARRINHO - Lembro-me avô. Chamava-se Bartolomeu Dias.
ZÉ CHICHARRO - E o gigante?
CHICHARRINHO - (pensativo) Adamastor.
ZÉ CHICHARRO - Tens a memória fresca, rapaz. Este velho pescador já se vai esquecendo de algumas coisas, mas com a graça de Deus ainda tem muitas histórias para te contar e muito para te ensinar.
CHICHARRINHO - Conta avô, conta. Ou então ensina-me coisas do mar.
ZÉ CHICHARRO - Isto que te vou ensinar é sobre um peixe da Terra Nova. Antigamente pescava-se de dóri e à linha. Hoje, com as novas tecnologias estão a dizimar tudo. A fome vem pelo mar meu rapaz. Sabes que peixe pescavam por lá, cachopo?
CHICHARRINHO - Não avô, não sei.
ZE CHICHARRO - Ainda hoje se pesca algum, mas já não é para as carteiras dos pobres. Escuta lá então...
(Vão entrando alguns personagens simbolizando bacalhaus)
CANÇÃO DOS BACALHAUS:
REFRÃO:
“FIEL AMIGO”Nós somos o bacalhau.Temos feito as delíciasDo povo de Portugal.
Nossa pesca era à linhaEm tempos que já lá vão.Somos agora arrastadosPara o fundo do porão.
De tanta “coça” levarmosA cota foi reduzida.É uma boa maneiraP’ra nos salvar a vida.
REFRÃO
Somos muito pretendidosRicos ou pobres, é igual.P’rós ricos é todo o anoP’rós pobres só no Natal.
Se não houver protecçãoSomos mesmo exterminados.O mar é de toda a genteSejam lá civilizados.
“FIEL AMIGO”Nós somos o bacalhau.temos feito as delíciasDo povo de Portugal.
(Saem)
«Retratar os costumes afifenses, as tradições locais mais ou menos longínquas, parodiar as figuras típicas da Terra, criticar as entidades e os poderes instituídos, não é apanágio de qualquer um, é sim de quem tem muito amor a Afife, de quem tem a coragem e a sabedoria de mostrar aos coevos o que foi e ainda é a vivência local, enfim de honrar o trabalho realizado ao longo dos últimos cem anos (se não mais)pelos Grandes Homens do Teatro em Afife.»
Casimiro Puga