"Varições em Sílaba Aberta" é uma obra dividida em três partes que são introduzidas por textos extra textuais de outros poetas contemporâneos, que surgem como sumários iniciais e veiculadores do pensamento do poeta. Curiosamente levantam a problemática da recepção estética levantada por Jauss, no último quartel do século XX, ainda hoje actualíssima e delineada pelo triângulo:autor, obra e público.
Assim, o primeiro texto, um excerto do poeta António Ramos Rosa, que serviu de base à tese do mestrado do autor, anuncia-nos o papel singular do poeta que traça o seu próprio caminho, um caminho percorrido de palavras. Na segunda parte, um texto do poeta deveras conhecido, Manuel Alegre, refere-se à funcionalidade da obra, o poema que desvenda e inquire. E o terceiro texto que encabeça a terceira e última parte da obra, pertence a Eugénio de Andrade, recentemente galardoado com o prémio Camões, questiona sobre o público leitor, quem recepciona na sua pureza, as palavras ditas que são como cristais?
Passando destas linhas de leitura externa para a produção intertextual vê-se que em"Variações em Sílaba Aberta"a primeira parte é constituída por um único texto, No Litoral do Devaneio (pág.9), em prosa. Na segunda parte aparece uma poesia ao gosto classicista da nossa contemporaneidade mais próxima. A terceira parte é constituída por um longo poema em aberto, interrogativo, intitulado sílabas que "andam no ar", na expectativa que as agarrem porque elas são ao gosto garrettiano, afagos de mulher e enleios de poeta.
A bonita capa alusiva à memória rupestre do Lindoso, a metáfora titular de todos os poemas inclusos: "Variações em Sílaba Aberta", a estrutura externa, os textos protocolares, e sobretudo a excelência da poesia deste poeta são mais que pretextos para percorrer´, de lés a lés, este livro.
(texto retirado da apresentação do livro, feita pela Dra. Arlete Faria)
e nasceu a poesia
Procurei-te por todas as ruas da cidade.Da minha cidade. Da nossa cidade.E ninguém me falou de ti.
Luziam nas casas os outros e os panos,as fantasias e as bugigangas,mas em nenhuma te sabiam.
As pedras construíam pedras,as árvores bailavam árvores,mas nenhuma te lembrava.
Até o sol só ardia.Até a água só fluía.Porque tu não estavas.
Parei. Já não havia a nossa cidade.A minha cidade era. A tua cidade era.A Nossa não, que te não encontrei.
E sorvi todos os baresna íntima ânsia de diluiresta intensa ausência.
Foi então que te vi.Sozinhinha e triste, sozinhinha e nua,estavas acenando, anichada
cá dentro, no fundo areal, antes de Tudo,lno limiar onde as palavras se constroem,entre o silêncio e a loucura.
Estavas bonita. Frágil. Só. Beijei-te.Com carinho te acariciei, Eurídice.Com palavras novas tangi minha lira
e nasceu a poesia.
tomou-me um farto cansaço
Tomou-me um forte cansaço.Quero dormir. Só.Quero um tempo para além de mim.Caíram, sozinhos, todos os sonhosde todas as roseirase lacrima, impotente, o despido jardim.
E as palavras que se não dizem,saltam ressequidasde suas conchas imperfeitasno limiar fugidiode todas as praias percorridas.E o cansaço avança e me adormecee se insinuam credos de escuras seitascom rituais de um deus planetário.
E fujo.Vou indagar nas arestas da dor,a possibilidade de um solna nascente da vidaonde, eterno, durma o Amor.
Talvez aí descanse.Talvez aí entenda a morte.Talvez aí justifique este percursoque não seiou o que quero dizer.
a inocente dormia
A inocente dormia,alheia aos sabores,quando sob a janelauma incandescênciade sílabas vorazesentumescia Romeude impossíveis amorese da madrugada mais imaturabrotavam as promessas audazes.
Sob os afagos da mãea inocente dormia.Mas Romeu também.
fernando do bolhão
pedra sobre pedraconstruíste loquazes clautrosde palavras azuis
sílaba sobre sílaba invadiste com rubros fonemas a pacata violência dos paúis
e ouviram-te os peixes.
no litoral do devaneio
Há um canto onde tudo se dilui. Reino de fábula. E de fadas.Aí moram sonhos e fantasias. Às vezes invadimo-lo. Evadimo-nos. Às vezes invade-nos. Evadimo-nos. Às vezes...invadimo-nos. Assim.
Há um canto onde tudo se dilui. Aí, as palavras são desnecessárias. As palavras são as coisas. Só aí somos passentos do real porque mergulhados no magma de antiquíssimas memórias, mais de antes que a Hora.
Há um canto, limiar erótico ao longo da praia, onde tudo se dilui entre a água e a areia. Aí, no litoral do devaneio, moram os mitos que, não raro, visitamos.
Há um canto onde tudo se dilui. Aí crescem sílabas abertas à volúpiua dos construtores de mitos.