O eu poético de Espelho Quebrado realiza a busca obsessiva um tu, a perseguição frenética de uma relação amorosa eu - tu, onde soam nitidamente notas de mágoa, saudade, sedução, erotismo, angústia, desespero e solidão. Está sempre bem plasmada a referência à ausência não só do tu mas também do eu, na medida em que este se refere à queda num niilismo existencial sem qualquer possibilidade de salvação.
A omnipresença da natureza e a passagem inexorável do tempo são também leitmotive de uma poética que é o espelho da opção por uma vivência e o desejo agudo de ter enveredado por outra (vide poema 40).
3.
Junto ao ribeiroHá musgo transpirando Leve e macio
Não venhas jáDeixa que a pressa demore
40.
Eu vim pelo caminho erradoTinha tufos, regatos cantandoPassarinhos num chilreio solene De tão nobre ser a minha causa
Mas vim pelo caminho errado Evitando o trilho aguçado da calçada E o rasgar dos pés despidos de peles
E vim pelo caminho erradoCom sombras verdes de arvoredosRefrescando-me as passadasMas não aliviaram a dor da chegada
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O sangue fervilha nas veias infectadas
44.
Quero-teGota de orvalhoEm manhã de Abril
Quero-teDeslizando meu corpo Riacho serrano Em tarde outonal
Quero-teBrisa de maresiaEm praia de sargaço
Quero-teBrasa ardente Na fria lareira
Quero-teDe todas as formas
Quero-teNo aperto do abraço
Quero-teNo colo............ no meu cansaço.
97.
AmanheceAinda não é manhãAuroras flecham E a noite sangra esperasNo manto da solidãoArchotes cegam os olhosTurbados por neblinas precocesOlho e o cinza ainda fica mais frioNa minha noiteA Lua estremece com medoOs sonhos afogam-se no rio cinzento e lodoso
POESIA DA AUSÊNCIA
O primeiro livro de Olívia Cardoso, Do outro lado de mim, apresentou-se com a imagem espelhada... e do meu também, da autoria de António Sílvio Martins. A simetria tanto do título como do texto, correspondendo a imagens focadas a partir de ângulos distintos, constituiu uma experiência única, penso, tanto para os autores como para os leitores.
Se é verdade que não há duas maneiras iguais de pensar e muito menos de sentir e dizer as coisas, tratou-se de um momento de partilha plasmado num objecto de contemplação e de discussão entre olhares diferentes. A colação de dois modos de se ver a si mesmos, de ver o mundo e de exprimir as emoções deve ter deixado marcas na escrita dos poetas.
A poeta, Olívia Cardoso, oferece agora ao seu leitor fiel uma colectânea de textos que escreveu entretanto e à qual deu o título de Espelho Quebrado.Não sei se estava nas suas intenções estabelecer uma ruptura ontológica com o primeiro livro. O que me parece é que na leitura que faço do seu novo poemário, o espelho que quebra é o da imagem que o sujeito poético constrói (construiu) de um Tu objecto de uma busca obsessiva.
O livro que agora temos em mãos é percorrido pela angústia da impossibilidade da imagem do Tu abandonar o espelho. Dito de outro modo, estamos perante o medo de essa imagem não abandonar jamais a memória do sujeito. Assim se entende a necessidade visceral do Eu poético em quebrar a imagem do Tu enquanto representação construída pelo sujeito como verdadeira.
Ao tomar consciência do fracasso dessa relação, o sujeito angustia-se. Porém, a partir de metade da colectânea essa consciência conduz o sujeito poético à assunção da impossibilidade da sobreposição do objecto do desejo com o corpo desejado. O salto só se torna possível com a rejeição dessa imagem do outro. Daí a ausência.
Tendo apresentado uma leitura global do livro, subjectiva como não pode deixar de ser, vejamos alguns processos, temas e termos em que a poesia de Olívia Cardoso vai manifestando o universo expressivo dessa busca.
Cada poema assenta na complementaridade desejada entre um Eu e um Tu. Essa perspectiva assumida poderia levar a autora a optar por duas abordagens: centrar a expressão da identidade inerente a qualquer sujeito que pensa, sente e tem necessidade de o dizer; ou constituir como centro da análise o objecto do desejo.Parece-me que há dois momentos diferentes no livro. Numa primeira parte a poeta opta nitidamente pela segunda abordagem: daí a existência de imperativos, exortati-vos, da negação, da caracterização do Tu associado ao Sol, à Lua, p.e., enquanto entidades impossíveis de aproximação ao Eu. Num segundo conjunto de poemas o sujeito assume a ausência do Tu, procura definir-se a si mesmo na sua multiplicidade como ser complexo que é e por isso passível de algumas incongruências que se manifesta no facto de se ter esquecido ou querido esquecer da ruptura assumida com o Tu. É aqui que surge reiteradamente a interrogação como tentativa angustiante de obter respostas, sabendo o sujeito dessa impossibilidade. Essa procura do conhecimento, ou melhor, do saber aquilo que o sujeito já sabe, constitui um dos aspectos mais emociais e cativantes da expressão poética. Com o mesmo intuito surgem as indicações de incompletude dos poemas (anotadas "incomp.").
Nesse contexto, não pode deixar de reparar-se no poema Não sei de mim por constituir uma síntese muito bem conseguida do desespero. Essa verificação da sua própria ausência é a imagem reflectida final da outra ausência -a do Tu. A descoberta da alteridade que há em si mesma é confirmada pelo espanto do sujeito marcado supra-segmen-talmente pela exclamativa.O momento mais dramático desta poesia essencialmente lírica surge quando essa descoberta da própria ausência conduz à aniquilação do Sujeito, que se transforma em Nada como no poema Sem ti.
O desespero que atinge o Sujeito nos poemas finais serão o corolário de um processo de busca inconclusiva no outro lado do espelho.Mas da reconstrução do percurso nos falará, estamos certos, o próximo livro de Olívia Cardoso.
Benjamim Moreira