Abordam-se neste livro várias temáticas que passam pelo Amor, Erotismo, Sensualidade, pelos lamentos nascidos do Ciúme, da Solidão e da Saudade provocada pela Ausência do Outro. É também recorrente a Fuga de Si / a Partida e a Procura do Outro para tornar possível a Descoberta do Eu. Prepassa também pelas páginas deste livro a ideia de uma certa fragmentação do eu poético que o conduz à sensação omnipresente de ficar aquém, de não alcançar a plenitude,de ficar num "quase"... Não faltam ainda as clássicas referências à Natureza, nomeadamente ao Mar e à passagem inexorável do tempo que remete para a morte física ou mesmo afectiva.
CIÚME
O vento rasga teu peito Numa corrida frenética Rio acima. Lâminas de brisa Cortam-te a pele. Voas sobre as águas Como se elas fossem tuas. ............................ Na margem O coração dói E sinto uma imensa inveja Do rio, do vento, De tudo em pensamento.
SOLIDÃO
Aqui sentada, Olho os quadros e os pratos Simetricamente colocados. Então enraiveço o meu ser Que se enche de doce fúria Contra minha casa cheia e vazia. Contra mim, que espero calada e fria Que chegue o que não chega, Que venha a força que não vem...
MORTE
Já morri E nem deste por isso Deixei de respirar E não te sobrou ar na sala Meu coração deixou de bater E teus ouvidos continuam mergulhados no silêncio Meu corpo arrefeceu E não sentiste a alma cada vez mais fria Morri E nem deste por isso Na cama da imaginação Tudo arrefeceu E o canto que era nosso Agora está frio... E é só meu.
Amanhã Acorda-me cedo Tenho de ir... No fio da minha vida Continuo a deslizar E sinto-o cada vez mais estreito. (p. 61)
Poética de Olívia Cardoso: um percurso de pureza
Os discursos que se cruzam na escrita de Olívia Cardoso podem, se visamos uma categorização literária e linguística, situar-se na esfera da enunciação lírica. Uma abordagem mais cuidada colocá-los-ia no espaço da dramatização dialógica.
Expliquemo-nos um pouco.
Entre o discurso marcadamente subjectivo da linguagem à procura de um leitor não assumido mas desejado, perde-se o sujeito que afirma, categoricamente, "sinto-me perdida". Nesse percurso, não de descoberta mas de domínio do Outro, só há lugar para sentimentos fortes como Amar, Odiar, Querer, Desejar, até chegar ao "arder de desejo" ou, mais indelével, no "ribeiro (que) escorre no ser". O Drama, por outro lado, existe na / pela ausência do Outro. A reiterada construção dialógica, a metamorfose permanente do Tu na "chuva",ou seja, a obsessiva procura do Tu não parece senão a necessidade imperiosa da descoberta do Eu. O espaço de liberdade do sujeito é, por isso, mais intelectual do que sentido. O desejo de liberdade do sujeito corresponderá à prisão que se quer no Outro, retenção do Outro no espelho do Eu. O lirismo torna-se sempre dramático na confluência do desejo com a impossibilidade permanente e por isso o enunciador declara "estou a cair", "eu não sei como fugir de mim". Essa irrupção do interior do sujeito mais não é do que esse desejo absoluto não de liberdade mas de libertação. A poética de Olívia Cardoso constrói-se na procura da reunião das peças quebradas de um todo. Para isso utiliza uma estrutura rítmica, paralelística e anafórica com algumas construções antitéticas e até paradoxais. A pureza da poesia de Olívia Cardoso está nessa estrutura paralelística em que as palavras estendem a sua leveza. O erotismo, enquanto manifestação do/ao outro, irrompe em muitos dos seus poemas procurando realizar os "desejos abafados / os sentidos adormecidos", num dramatismo gradativo. Estamos assim perante uma poesia que, na esteira de Florbela Espanca e de outros grandes poetas, constrói com a linguagem o estado etéreo da síntese impossível. Através da poesia, a autora vai percorrendo, no mundo antagónico de desejos e realidades incompatíveis, o seu caminho. Esse caminho vai-se tornando mais purificado à medida que sobe na delapidação das palavras, na purificação da linguagem, na contenção sentimental.
Benjamim Moreira