Esta separata da revista “Caminiana” número 14, de Dezembro de 1987, é preenchida com o artigo do Dr. Lourenço Alves sobre a defesa e protecção do património cultural do Alto Minho. Estruturalmente divide-se em três partes, uma primeira constituída pela apreciação das leis publicadas para defesa do património e atentados de que, desde sempre, foi alvo esse património; uma segunda demonstrando e comprovando o importantíssimo papel da Igreja em prol da promoção e da defesa da arte; uma terceira, que é um apêndice documental.
Assim, se no primeiro ponto o autor nos refere algumas leis estatais de protecção patrimonial, ao mesmo tempo que menciona as usurpações havidas desde o século XVIII ao património que era pertença da Igreja, por parte do Estado, no seguinte, anota os diferentes tipos de depredações a que todo o património cultural esteve e está sujeito, pese embora a existência de leis proteccionistas. Entre os casos mais flagrantes, salienta a célebre biblioteca de Alexandria, monumentos clássicos da Grécia e de Roma, entre outros. Dá ainda uma certa ênfase às mutilações que sofreram algumas construções pertencentes a determinado estilo arquitectónico, quando o mesmo foi substituído por outro, como foi o caso dos períodos maneirista e barroco, épocas em que muitas igrejas medievais foram derrubadas para serem reedificadas segundo a gramática dos novos estilos vigentes.
O assunto inicial é retomado no final do segundo ponto e desenvolvido nos seguintes, focando respectivamente a “Carta de Veneza”, a “Carta Europeia do Património Arquitectónico”, a “Lei do Património Cultural Português” e a “Concordata” bem como os princípios que cada qual preconiza para defesa e preservação do património cultural.
O autor faz questão de frisar que a abrangência da expressão “património cultural” não se esgota apenas no património arquitectónico; antes expande-se uma vasta gama de “objectos, realizações, conceitos, tradições, usos e práticas” que o homem criou a fim de “satisfazer as necessidades mais prementes” ou “desejos, preocupações e cuidados em ordem a uma vida equilibrada e sã”.
A segunda parte principia com uma visão diacrónica da evolução dos estilos artísticos que, se generalizada no que concerne à Europa, pormenoriza-se em alguns aspectos relativamente a Portugal e mais concretamente na sua aplicação às construções de cariz religioso: igrejas, capelas, mosteiros, conventos, com o intuito de demonstrar e comprovar o empenhamento da Igreja como uma das principais promotoras e defensoras da arte. É então evidenciado o papel da Igreja enquanto criadora não só de lugares de culto, como também de museus, arquivos, bibliotecas (locais de recolha do acervo documental e do espólio histórico e artístico) e comissões de inventariação, de protecção e de preservação desse mesmo património. São referidos alguns Papas e bispos com papel preponderante na defesa patrimonial, assim como o que em assuntos desta natureza ficou definido pelas diversas Concordatas.
Focalizando as diferentes comissões de Arte Sacra, o autor manifesta o seu pesar pela não existência de uma comissão mais centralizadora que coordene as diversas comissões diocesanas, terminando com a apresentação da fundação, organização e funcionamento da “Comissão de Arte Sacra de Viana do Castelo.”
O Apêndice documental, terceira parte, está repartido em três outros apêndices. O primeiro contém uma ficha/inquérito, muitíssimo pormenorizada, para a inventariação de todos os bens móveis e imóveis da Diocese de Viana do Castelo com interesse artístico e cultural; o segundo, uma outra ficha, agora para levantamento do acervo documental e literatura religiosa dos arquivos paroquiais da Diocese de Viana do Castelo; o terceiro é uma pequena síntese do historial dos monumentos nacionais do Alto Minho. Este terceiro apêndice encontra-se ilustrado com imagens de alguns dos monumentos historiados.
“1- A IGREJA PROMOVE A ARTE
Prescindindo de uma certa interpretação relativista da história, que vê por detrás de todos os acontecimentos causas segundas que em nada valorizam a análise dos factos, nem a imagem das personagens neles comprometidas, temos de convir que a igreja foi a principal promotora da Arte em todos os tempos, quer inspirando obras, quer fazendo encomendas, quer ainda fomentando uma «praxis» litúrgica que exigia toda uma infra-estrutura de monumentos, imagens, pinturas, objectos, etc.
Nos primeiros tempos do cristianismo, estando a igreja ainda muito entrosada na mentalidade judaica que não admitia imagens sensíveis do Deus invisível, e também por um certo decoro em relação às religiões pagãs que tinham como principal suporte, além da mitologia, um conjunto de estátuas que acabaram por ser objecto de idolatria, a arte cristã é quase toda simbólica e muito limitada na sua expressão formal. Esta arte simples exprimia mais conceitos do que realidades concretas. Tirando uma ou outra imagem pintada (a Virgem, o Cristo com o cordeiro, as orantes, etc.), quase sempre de inspiração oriental e colocadas nos sítios mais recônditos das catacumbas, toda a expressão plástica da primitiva arte cristã resume-se em símbolos (peixe, pomba, cordeiro, etc.), não totalmente alheios a todo um conjunto de sinais que vinham da antiguidade clássica.
Quando o imperador Constantino, em 313, deu a paz à igreja, surgiu toda uma arte monumental, reflectindo temas e normas da arquitectura clássica. São as basílicas cristãs, umas construídas de novo e outras reaproveitadas dos velhos tempos, com as adaptações necessárias ao novo culto.
Ao lado destas igrejas amplas para albergar o povo durante os actos de culto, apareceram baptistérios e capelas tumulares, geralmente de planta centrada, isto é, em forma de cruz grega (quatro braços iguais).
Esta arquitectura de tradição clássica, espalhou-se por todo o império do ocidente, prevalecendo até à Baixa Idade Média (século XI), com pequenas «nuances» que lhe advieram do império bizantino minimamente afectado pelas invasões bárbaras e árabes, ou da reforma carolíngia.
O maior contributo para a arte monumental e escultórica verificou-se, sem dúvida, na idade média com o românico e o gótico.
Com o estilo românico, mais rural e monasterial, ao contrário do gótico que era mais urbano e centrado nas catedrais, deu-se a explosão artística jamais igualada em épocas posteriores.
O românico, sendo uma revivescência de formas romanas, com influências bizantinas, árabes e regionais, criou as grandes abadias do ocidente, muitas das igrejas e catedrais, algumas igrejas de centros urbanos e essas admiráveis capelas situadas no cimo dos montes ou no fundo dos vales, cuja beleza e encanto continuam a desafiar a imaginação do homem moderno, mais voltado para o quotidiano, o imediato e o material da vida.
O estilo gótico nasceu com as cidades e para as cidades. Toda a sua expressão artística anda mesclada do esforço indómito desse extracto social, que enriqueceu à custa do artesanato e do comércio, e que ficou na história com o nome de burguesia, coadjuvado pelo povo, simples e humilde, que compartilhava com ela o orgulho de possuir a igreja mais alta e mais ampla da região.
Todas as críticas que se fazem em determinados sectores do pensamento moderno, a este espírito mais voltado para o céu do que inclinado para a terra, além de não terem consistência e de serem contraditadas pela própria experiência artística, não valem uma dessas catedrais, cujo esplendor continua a ofuscar muitas das expressões formais da arte contemporânea.
Enquanto da banda de cá dos Alpes (França, Espanha, Portugal, etc.) se esgotavam as últimas formas do estilo gótico flamejante, na Itália ressurgia o Renascimento (renascittá, como lhe chamou no século XVI Vasari), no qual transparecia, não o sentido sobrenatural do mundo e da vida, como no gótico, bem expresso na verticalidade das formas artísticas, mas o sentido humano e terreno das coisas.
O estilo renascentista, que presidiu à construção de igrejas e de palácios importantes, em Florença, Veneza, Roma, etc., era o resultado duma mentalidade humanista, iniciada muito cedo na Itália, inspirada na literatura e na arte clássica.
Além de imitarem as formas antigas, os artistas imprimiram às suas obras o sentido da horizontalidade, em detrimento da verticalidade, os elementos decorativos tornaram-se mais funcionais, respeitaram-se as regras da proporcionalidade e adoptou-se a perspectiva, como forma de escalonar a realidade na sua expressão plástica.
Todo este movimento, que mais tarde se propagou a toda a Europa, já em formas mais desenvolvidas e mais arcaizantes, se pretendia no campo das artes o estudo da natureza e do homem, como medida de todas as coisas, nunca se apresentou como uma alternativa à concepção cristã do mundo e do homem, nem muito menos contra a igreja e a religião. Pelo contrário. Quase não houve nenhum artista do renascimento que não se deixasse inspirar na arte religiosa, legando-nos, em todos os domínios, obras de extraordinária beleza.
A própria igreja cedo baptizou este movimento humanista e inovador, encomendando algumas obras que, actualmente, enchem a Pinacoteca do Vaticano e outras colecções de igrejas, capelas e mosteiros. Talvez Miguel Ângelo, Rafael, Leonardo da Vinci e tantos outros pintores, escultores e arquitectos nunca tivessem atingido a aura da glória sem uma «Ceia», uma «Capela Sistina», um «Moisés», uma «Pietá», uma «basílica vaticana», etc.
Porém, a partir dos princípios do século XVI, as formas artísticas alteram-se, a proporcionalidade rompe-se, o desequilíbrio instala-se. É o maneirismo em que os elementos decorativos retomam a sua função, que consiste em adornar, os frontões interrompem-se para albergar um medalhão, uma cartela ou um adorno qualquer, a planta dos edifícios assume a forma de cruz latina, as estátuas abandonam a rigidez clássica para se tornarem mais flexíveis e as pinturas começam a projectar-se na paisagem.
É o início do barroco que atingirá o auge, nos meados do século XVIII, com o rococó.
São deste período muitas igrejas, a princípio austeras e pesadas, como a regra jesuítica, depois leves e diáfanas como um bouquet de flores.
Em Portugal, surgem os altares de talha dourada, gorda, com ramos de parra e anjinhos à mistura nas colunas salomónicas. É também o período mais brilhante da nossa escultura religiosa. Então, o Alto Minho possui uma riqueza incalculável de imagens desta época, todas elas bonitas, vaporosas, de mantos desfraldados a um vento invisível, místico.
Depois do barroco, surge o neoclássico numa tentativa de regressar aos tempos antigos e renascentistas, para contrabalançar o exagero das formas decorativas usadas no final do barroco. Mas em vão, porque Portugal, se teve alguns estilos bem definidos, foram o românico e o barroco, como afirma Reinaldo dos Santos.
De qualquer maneira, se olharmos muitas igrejas das nossas aldeias e, até mesmo, das vilas e cidades, verificamos que todas elas propendem para a simplicidade de volumes e de formas decorativas. A imaginária é menos abundante, até porque perdeu, em grande parte, a sua originalidade artística, não apresentando outra coisa senão cópias fiéis de modelos estereotipados.
De qualquer maneira, lançando um olhar retrospectivo para este panorama da expressão artística, verificamos que a Igreja, no mundo e em Portugal e, mais concretamente, no Alto Minho, é a grande responsável por um património valioso, que criou e que procura defender a todo o transe.”