Numa das últimas páginas deste livro podemos aceder à "tábua do poemas", um índice com os títulos dos 21 poemas, que foram escritos no período compreendido entre os finais de 1990 (Outubro) e inícios de 1991 (Abril).
Na leitura dos títulos é perceptível a carga pessoal e intimista dos poemas, denotando-se um possível percurso de crescimento pessoal, marcado pela presença e memórias das suas origens.
Mas seguindo a curiosidade provocada pela leitura inicial da "Tábua de Versos" mergulha-se no texto poético do autor, que neste livro tem uma marca claramente autobiográfica:
* A irmã Adelaide Couto Viana a quem é dedicada a obra,...
* as memórias do seu nascimento na casa que "oscilou como um barco no mar/.../ E, entre as rezas e ais, comecei a chorar. (p.7),
* as memórias da infância,...
* ... as gotas de sangue, que marcam o desaparecimento de familiares... a primeira quando tinha cinco anos (Avô),... um amigo do Liceu (Trancredo, p.14)
UM MENINO DOENTE
Fui um menino doente. E a febre era tantaQue o doutor Laureano franzia a sobrancelha:A mão cruel da angina a apertar-me a garganta,O sarampo a embrulhar-me numa manta vermelha.
Minha mãe, num constante, aflito sobressalto,Sentava-se ao meu lado. Eu queixava-me. E sóMe sentia melhor ao ouvi-la ler altoUm livro milagroso a que chamava o Só.
E eu sonhava, pra noiva, uma purinha assim;Um estranho algibebe a talhar-me o caixão.Porque certa velhinha, pelas noites sem fim,Me buscava e eu ia, como foi meu irmão.
O apelo do vento, na vidraça, lembravaEsses dois cavaleiros de que eu era o meninoA correr pelo mundo ( e minha mãe chorava!),À procura de mim com calma e sem destino.
Mas, depois, vinha o sono («O João dorme!»). EntãoEu ficava quieto. E nada me doía.- Mãe, por me leres o Só, com o teu coração,Minoraste os meus males! Mas, em compensação,Fizeste-me, pra sempre, doente da poesia!
CERTO NATAL
Meu Pai, certo Natal, levou-me às Ursulinas,Para a Missa do Galo.O vento, violento, zunia nas esquinas.Que frio, Santo Deus! Eu tremo ao recordá-lo!
E o céu também estava trémulo de estrelas.Sob as névoas do incenso e da respiração,Toda a igreja tremia no tremular das velas.E os joelhos gelavam-me, na humidade do chão.
As mãos postas doíam-me, no roxo das ftieiras.A meu corpo era todo um arrepio.Mas, no presépio armado, com carinho de freiras,O menino sorria, nuzinho, a tanto frio.
E, pouco a pouco, o canto, a liturgia,Faziam-me esquecer o tempo agreste e a dor.E crescia em redor um calor de alegria,De paz, esperança, fé, amor…
E ao descer a montanha, onde a geadaDesenrolava já a alvura do lençol,Eu trazia, no peito, a alma agasalhadaE o coração a arder como o ardor do Sol.