APRESENTAÇÃO GERAL
O corpo da obra Paisanas (Canções do Meu Amado País) apresenta-se dividido em quatro partes temáticas: Cidade e Termo - Viana; A Lenda do Rio Lima; Tricana; A Chinela; Enquanto é Tempo; Ou Sim...; Ó Tempora; Sobre a Areia; A Canção da Brigada do Minho Murmúrios do Lima - Maria Luisa; Contemplação; Apartamento De Boca para Fora - Lugar Comum; Soltos; Dia d'Anos; Concisa; Carta de Férias; Papelucho que Oiro Vale; Trocadilho; Verdade Velha; Timidez; O Laço; Ao Passar; Pontuação a Tempo; Trovas a uma Morena Brisas do Mar - Dor de Cotovelo; O Leque de Baile; A Última TrovaSegue-se uma tradução para alemão do poema «Apartamento», sob o título «Trennung» por Willy Maass.
Fecha-se esta edição com uma secção intitulada Dos Jornais, na qual foram compilados vários comentários críticos sobre a obra, publicados em vários jornais no ano 1922.
LINHAS TEMÁTICAS
Em versos cheios de melodia que «...se lêem com agrado, pela simplicidade que deles dimana como a água cristalina de uma fonte...», Sardinha canta a graça e a gentil beleza da mulher do povo, da tricana vianesa (Tricana, A Chinela, Ó Tempora), cuja maneira típica de vestir, com o seu chaile e chinela de verniz - ilustrada na capa do livro - há muito se perdeu .
O tom irónico e leve com que retrata e critica aspectos da vida citadina, alia-se a descrições da terra e do seu povo «...fazendo em ligeiras líricas, verdadeiros quadros de mestre aguarelista...».
TRICANA
Se és a mais linda tricana,A mais vestida de graça,A mais galante, que passaPelas ruas de Viana!
Que me dá que a ti tomasseA má língua à sua conta?!...Se é rosada a tua face,E alegre o teu olharComo a aurora que desponta!Se é ligeiro o teu andar, O teu porte senhoril!Se és de tal modo gentil,— Para que me hei de importar?
Com o punho arremangado,A ver-se a pele mimosa;Com o cabelo ondeado;Tão fresca, linda, viçosa!
Lenço no ombro caído,Deixando ver (e eu que espreitoCurioso, embevecido)A brancura do teu peito!
A chinela mal pousando,Esbelta, viva, ligeira,Num andar gracioso e brando!
Ver-te, Maria, formosa,Tão linda, tão feiticeira,Faz a vista venturosa!
Passas por mim apressada,Dizes-me adeus sorridente;Voa-me a alma embaladaPela tua voz timbrada,Pela harmonia que sente.E eu, num absorto sonhar, Fico ainda a recordarA blusa nova de chita, A saia branca, a chinela,A meia cor de canela,A tua face bonita.
Se és, Maria, tal encanto,Formosa, lépida, viva,Se o teu olhar me cativa,Que me dá a mim portanto,
Que me importa a mim que digaA má língua que tu fazesTolarias com rapazes,Doidices de rapariga?!...
A CHINELA
a Duarte Solano
Conquanto fosse de esmerado talhe,Não gostei de te ver, porque a chinela,Leve e humilde, a uma tricana dá-lheUm outro encanto que é segredo dela.
A bota traz o pé fechado à chaveE encobre a base esguia da mulher...Por isso é própria duma dama grave,Que já não tem quem a procure ver.
Não há que valha em graça e seduçãoA tua chinelinha de verniz!O meu olhar persegue-a, como o cãoPerdigueiro no rasto da perdiz...
Porque ao andar descobres o artelhoE da perna roliça um bocadinho...(A perna tentadora, aquele joelho!)Ainda não os vi, mas adivinho.
Falam de ti; granjeias ruim fama;Perguntam donde vem tanta riqueza.Deixa a botina para um pé de damaE usa a chinelinha vianesa;
Sem a meia; acredita: teu pé nu,Lácteo e leve, liso e diminuto,É digno de mostrar-se, porque tuPossuis um pé de imagem, impoluto.
E que o não fosse? Mas descansa, é.(Às vezes tem-se cada ideia louca:Podias ter um calo no teu pé,E o calo ser a marca de uma boca.)
Dizes às vezes com ar de penaQue eu não sou fôrma do teu pé. Pudera!A fôrma do teu pé é uma açucena,Quando muito serei folha d' hera;
A folha d' hera rastejante e escrava,Não terá dó do seu destino cru?Pois folha d' hera a mim que me importava,Se o muro onde estivesse, fosses tu...
Agora que usas botas à madama,Não tornarei a ver o teu pezinho,Nem cismarei, com o meu peito em chama,No que ainda não vi, mas que adivinho...
APARTAMENTO
a José Couto Viana Ferreira
Depois daquela despedida crua,«— Tudo acabou!» (Meu Deus, que despedida!)Fiquei pregado ali em plena rua,A pouco e pouco me fugia a vida.
Ia tremendo quando fui falar-te,E entrecortada me saía a fala,Nas convulsões dum peito que se parte,No arquejar dum coração que estala.
Mal pude articular o que sentia,Saíam-me as palavras em arquejos,Meu coração entrava na agonia!
Porque não viste, Amor, o meu olhar?— Os lábios foram feitos para beijos,Os olhos é que são para falar.
Fiquei pregado ali, em plena rua,Como se dera um passo e avançasse,A alma me ficasse ao pé da tua,A minha vida presa a ti ficasse.
Ergui os olhos p'rà varandaNa esp'rança vaga de te ver sorrir;Mas voltaras as costas. — Vamos, anda,Tudo acabou, é tempo de partir!
Eu vinha desvairado, enlouquecidoDaquele golpe. Mal podia andar;Porque o meu coração tinha morrido,E os mortos são pesados de levar.
De mim te apartas. Deixas-me sozinho;Fico num triste desamparo agora.Perdido o guia, vou como um ceguinho,Aos tropeções por essa vida fora.
Sobram mulher's. Mas como tu, ó minhaPerdida noiva, aonde encontrarei?Posso-as lá eu amar! O amor que tinha,Foi para ti, sem mais nenhum fiquei.
Tu és a linda, a inigualada, a rara,A ti curvara o seu joelho um rei;Tu o ideal não és que eu formara,Porque de ti o ideal é que eu formei.
De mim te apartas. Um p'ra cada lado:Vais conhecer novos amores, vaisA outro dar o teu sorriso amado,— E a outra eu sinto que amarei jamais.
Irás ser doutro! Se casares um dia,(Que ideia horrível! Ver-te em alheios braços!Eu sinto o sofrimento que teria,Se o peito me arrancassem aos pedaços.)
Se um dia te casares, (que tortura!) —Sejas tu mais feliz do que ninguém,Tenham os teus filhos a maior ventura,Teus filhos sejam lindos como a mãe.
Crê que não guardo o mínimo rancor,Em mim encontras o amigo certo:Morrer por ti, se alguém preciso fôr,Por ti então todo o meu sangue verto.
E se algum dia eu te fiz chorar,Fui causa de desgosto para ti,Seja estéril a terra que eu pisar,Maldita seja a hora em que nasci!
LUGAR COMUM
a Henrique Couto Viana
Partiste. Quis ver-te. Ias contente,Como se fôra viagem de noivado,Um sorriso a brincar no rosto amado,Dizendo adeus com o lenço a toda a gente.
Mas para mim nem um olhar dos teus!(Ah! visses meu olhar como era triste!) E lá partisteSem aos meus olhos tu dizeres adeus.
Se o pensamento meu tens a seguir-te,Para que havias tu de despedir-te?
Ó TEMPORA
a António Lima
Oh! que saudade, Maria,Eu tive da mocidade,Quando, inda há pouco, te via!
Tu, a tricana galante,Com fama em toda a cidade,Eu, o ardente aspirante!
Como vai longe e distanteO tempo da nossa idade!
Os versos, que eu te fazia!Aquele amor agarrado!Que saudades produzia!Saudades!...
Como sentia,Um pungir cavo e magoadoDentro do meu coração,Só de lembrar-me, Maria,Dos tempos que já lá vão!
E hoje tudo mudado!O teu marido é soldadoE eu — vejam lá! — capitão!
Ó loira e esbelta Maria,A vida tem vários trilhos;Ergue a uns, a outros rasa:
Pensei eu, quando te via;Espiolhavas os teus filhosAo portal da tua casa.
Ó loira e esbelta Maria!
VIANA
a João de Alpuim de Agorreta e Sá Coutinho
Terra tão clara e tão linda,De arrabaldes tão formosos,Floridos, gratos, viçosos!— Não conheço terra igual!Como ela não vi ainda,Nem na há em Portugal!
Raparigas de VianaMaravilhas não serão;Mas de seus olhos dimana,Como um perfume rescendeA luz excelsa, que prendeAs almas em devoção!Mas têm no corpo beleza,Gala, donaire, viveza,Que espertam o coração!...
Por isso é terra de amores,E para amores fadada.(O exemplo vem de cima,Porque Viana é amadaPelos dois namoradores,Que é o Mar, e que é o Lima...)
O Mar, eterno devasso,Ardente, voluptuoso,Dá-lhe abraço sobre abraço,A rebramar, amoroso...
E o claro Lima brando,Com melindroso carinho,É um murmúrio, falando,Beija-a de leve e mansinho.
Pretendida assim, Viana(E que espanta, se é mulher?)Dos dois amores se ufana,Beija um, outro rival,E a um e outro quer:Ao Mar — o amor sensual,
E ao rio do Esquecimento, Que é o amor sentimento...
Terra de amor e de encanto,Há de ser bendita, enquantoHouver olhos para verE corações para amar,(Que é o mesmo que dizerCorações para chorar...)
LENDA DO RIO LIMA
a Miguel de Alpuim de Agorreta
Ouço dizer que em épocas distantesAs legiões dos Cônsules vieramÀ Lusitânia norte, e transpuseramDum rio as mansas águas murmurantes;
Que era tal o encanto das paisagensE tépido, aprazível o ambiente,Tão balsâmico o ar e recendente,— A vida tão feliz nestas paragens,
Que ao longo dessas ribas solitárias,Orladas de verdura e salgueirais,Aqui estabeleceram arraiaisAs peregrinas tropas legionárias.
Correram as calendas de fugida;Há muito descansavam os peões;Os cavalos pasciam ; às legiõesNunca chegava o dia da partida.
Porque do rio as águas murmurantes,No sossego das noites, ao luar,Soltavam harmonias de encantarJamais do Tibre ao Douro ouvidas antes.
E tinha tal poder o seu acento,Que de Roma se foram olvidandoAs legiões remissas, e chamandoFicou-se o rio, então, do Esquecimento.
A ÚLTIMA TROVA
a José Pereira Cyrne de Castro
A obra é iniciada com uma quadra dedicada à cidade:
Ó Viana, ó meu país, Ó terrinha bem amada, Se o Senhor voltara ao mundo, Não qiusera outra morada!
Foram aqui incluídos alguns textos críticos que dão o seu contributo para a melhor compreensão e avaliação da obra, muito embora surjam somente no final do livro:
A Luta (Lisboa) de 10 de Outubro de 1922
«…como bom português, é aos amores que pede inspiração. E propositadamente dizemos – amores – no plural, porque o autor não suspira liricamente endeixas junto de quem lhe tivesse ferido o coração. Não se trata de paixões, mas daquele amor à moda pagã que nasce e morre entre dois amplexos. Devemos dizer que o faz com galhardia, e muitas vezes com graça, podendo louvar-se em muitos dos seus versos uma espontaneidade e singeleza apreciáveis. O leitor reconhecerá essas qualidades na poesia (…) intitulada A Chinela (1) (...)»
Voz Republicana (Viana do Castelo) de 21 de Outubro de 1922
«Extraímos (...) das Paisanas, o livro de versos recém-editado nesta cidade, a poesia a que o seu Autor pôs aquele sugestivo título Ó Tempora (1). Ao efectuá-lo, não devemos deixar de explicar que nos influencia na escolha feita o acentuado sabor local, paisano (...) daqueles setissílabos, para nós dos de maior melodia, não obliterando as estrofes tão rítmicas da Tricana (1), essa outra composição em que o Poeta logrou merecido sucesso, a ponto de serem decoradas aquando da primitiva publicação há anos num jornal desta cidade, em que se estiliza e perpetua o tipo da interessante e sedutora filha do povo de Viana. Nesse quadro do Ó Tempora, Ernesto Sardinha encontrou a fórmula (graças à expressão delicada, à rima, à síntese e ao amargo humorismo) para concretizar este contraste, tão vianês, entre a grácil tricaninha de outrora e a mãe de família de hoje, nem sempre vivendo com o desafogo que lhe permita conservar a linha da mocidade. E já, quando encontramos alguma destas nas ruas da cidade, e nos lembramos das galas e frescor desaparecidos – as palavras ou o comentário, que nos acode instintivamente, é o estribilho «Ó loira e esbelta Maria!...»
Voz Republicana (Viana do Castelo) de 4 de Novembro de 1922 «…abre-se o livro e… o que é que se topa? Topa-se (...) e deixando agora tudo o mais (...) a riquíssima, a soberba maravilha - Apartamento (1) - quinze estâncias esplendentes, todas de borbolante inspiração, de eloquência nativa, sem a escorrência nova-rica de enjoalhados tropos farfalhantes; não, - tudo palavras do natural falar, aquelas palavras que, de velho instinto, já nos conhecem o caminho da garganta quando lá vão ter os soluços das grandes dores (...) No Apartamento brotam as imagens em tropel como nos prantos dos rudes; e, sendo poderosíssimas e de entalhe profundo, são todavia de velho corte e sabor tão português, tão nativamente português! Eu vinha desvairado, enlouquecido, Daquele golpe. Mal podia andar; Porque o meu coração tinha morrido, E os mortos são pesados de levar. Mas urge transcrever mais, documentar mais, e ver-se-há se a admirável composição não revela um formidável temperamento de poeta nêsse rapaz novo, ainda de nome obscuro: (1) (...)
Oh, decerto, decerto é preciso subir até aos cimos mais oxigenados da literatura portuguesa, ir até aos passos mais inspirados da Vida, de João de Deus, para se encontrar lirismo tão seivoso como o do Apartamenro. Até a técnica do verso, que noutras composições do livro deixa a desejar, é aqui qasi sempre magnífica: os versos arfam, estacam amiúde, não vão olimpicamente no passo igual e sereno do Comedimento; vão humanamente e miseravelmente aos arquejos, - harmónicos com os solavancos dum coração em transes. E é de notar - pois não é? - que o poeta espontaneamente, num transparente «sem querer» - e só porque tem a alma do bardo português - acaba o breve e forta drama... - como? Morta (ou como morta) para o enamorado, a «perdida noiva», o alto e espedaçado chorar de despedida amaina enfim. E a voz deplorante, mudada a clave, varia de tom (...) para um sussurro místico, rogando bênçãos.- É que logo ali nas estâncias finais, dulcíssimas (Sejas tu mais feliz do que ninguém! Teus filhos sejam lindos como a mãe!) começa o culto saudosista, não bem Àquela que se perdeu, mas à sua sombra, ao vulto «doce-amargo», a que o enamorado se aferra para sempre, no viver e fremir subjectivo - como é próprio da incomparável ternura portuguesa; como quando Camões, no século XVI, rezava: «Descansa lá no céu eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste!...»; e como quando João de Deus, no século passado, suspirava: «Não sei se me voou, se ma levaram; nem saiba eu nunca...» Creio que Apartamento é uma das mais belas poesias que se têm escrito; creio que vale, que excede, e de muito, todo o livro - e na sua admiração me demorei; e que possam soar para o poeta muitas horas em que o seu forte poder acorde todo, e entre todo em jogo, como na hora do Apartamento, posta em pé toda a vibratilidade de seus nervos de eleito, de altíssimo artista! Quem sabe? Então formaria de primores a sua obra, à sua altura, à altura a que mostrou poder subir... Diz isto, então, as mais composições se me afiguram falhas absolutamente de mérito? Tudo é elativo... e é-se guloso; ora, aparecida uma raridade saborosa, porque se não hão-de pedir mais a quem, sendo capaz, tem o dever de no-las dar? (...) Ora em muitas das demais peças poéticas, posto que haja lá por vezes uma leveza rendilhada de galanteria, por vezes num tom entre irónico e meiguiceiro, fluentíssimo e escorregante, que lembra como certas trovas de Augusto Gil, o trovar do povo - a verdade é que quási sempre a alma do poeta jaz, dorme (ou parece-o), enquanto a boca vai cantando fácil, só no extremo dos lábios, sem que a voz arranque do fundo e traga de lá acentos de comoção...que nos comovam.»
FERREIRA SOARES
Diário de Notícias (Lisboa) de 20 de Novembro de 1922
«... diz-nos ele, num humorístico prefácio, que as suas estâncias lhe parecem simples e naturais como a personalidade de quem as escreveu, a paisagem onde se enamoravam os seus olhos de criança, as moças que o inspiravam e o povo a que pertence. Não é imodesto o juízo que Ernesto Sardinha forma dos seus versos, todos dignos de apreço e muitos de excepcional louvor. O poeta é um lírico, que sente o amor com todas as suas seduções e encantos, não nos flagelando com a dscrição de dores tétricas e imaginárias e comprazendo-se até em nos fazer sorrir com composições graciosas e cheias de meigas ironia. Tem as suas afinidades com alguns dos poetas de maior renome, o que não prejudica a sua individualidade. Ao lermoa a Tricana lembra-nos que João de Deus a poderia ter escrito, como ao encantarmo-nos com Verdade Velha nos parece que estamos a ler Augusto Gil. E nestas palavras vai o maior elogio que poderámos fazer ao poeta das Paisanas. Querem a prova de que não exageramos? Ouçam a composição intitulada Lugar Comum (1)
E esta quadra com que fecha a admirável poesia Apartamento:
E se algum dia eu te fiz chorar, Fui causa de desgosto para ti, Seja estéril a terra que eu pisar, Maldita seja a hora em que nasci!
É simples e é belo, não é verdade?» ELCAY.
(1) Reproduzida em Excertos