PARA UMA TERRA MAIOR
Maria Emília Sena de Vasconcelos confessa-se para a sua biografia: "Eu nasci longe".
Nasceu, de facto, em Lisboa, sua «terra maior», longe do Minho de Viana, onde teve raiz e criou raízes: "São minhotos os meus netos/ corno era o meu avô".
Do berço distante e vasto, "não trouxe saudades", E, nesta Viana, sua "terra mais pequena", mas notoriamente mais amada, nasceu-lhe, por amor, o presente livro de poesia, todo ele dedicado a louvá-la, nas suas paisagens, monumentos, hábitos e gentes.
Em outras ocasiões, teve a autora ocasião de, numa visão minuciosa e sábia, lhe desvendar a história singular, nos factos mais relevantes; de lhe estudar o perfil arquitectónico, no alarde de muitas casas nobres da urbe, memorando as famílias que as habitaram, com suas prosápias e fraquezas e a opulência de muitas igrejas e capelas oiradas de intrincada talha, com a relação dos seus piedosos oragos e devotos fundadores. (E mereceu-lhe, agora, versos de admirável vigor o túmulo filipino que a igreja de Santo António, esse soberbo exemplar do barroco português, acolheu, onde jaz o cavaleiro do século XVI, António Miz da Costa, falecido no século seguinte, sob o domínio de Castela, que ali, "despindo o ferro/vestiu granito".)
Em Viana, o coração de Maria Emília Sena de Vasconcelos "é irmão/do Chão/onde tudo é são/ e natural". E de Viana, "olhando em volta", a escritora extasia-se com a terra que "cheira a resina e a sal" (os campos e o mar), cantando-a em versos de ritmo ágil, bem rimados e de feliz espontaneidade.
Vê-a no passado, "olhando atrás", quando percorria, pela mão paterna, aquela "estrada plana" da Areosa, onde Junqueiro achara inspiração para celebrar A Moleirinha, com o burrico "toque, toque, toque", .. Ou quando, mais saudosa ainda, recorda o chafariz do Campo do Forno, onde afluíam as bilhas sequiosas, erguidas à cabeça pelas «"tricaninhas" das fontes/de avental e de chinelas», tão festejadas, nos primórdios deste século, pelas liras locais de Salvato Feijó e de Emesto Sardinha.
Do mar, traz-nos Maria Emília Sena de Vasconcelos a alegria sonora dos pregões peculiares das nossas peixeiras, levando na canastra "o cheiro à lota"; a descrição comovida da procissão da Senhora da Agonia, quando, barra fora, a Santa parte para abençoar as ondas, rezando, como diria António Nobre, tão próximo destes versos, a Ladainha das Lanchas; e mais o ímpeto dramático do "naufrágio à vista", culminando com a morte do arrais, "com tanto sol entornado/no peito rijo e no rosto/tisnado".
E dos campos (nostalgicamente, a poetisa lembra os de Perre, outrora fecundos, "vestidos de luz amena", "entretecidos com pinheirais", agora sem viço, numa poesia onde julgo escutar ecos do estro do Conde de Monsaraz); dos campos em plena romaria, traz-nos a alacridade e bulício da feira aldeã (Vamos à Feira é, quanto a mim, uma das peças líricas mais conseguidas deste livro: tela ar-librista de intenso e exacto colorido); o arruído do foguetório, enquanto o baile entontece; o labor e o lavor, nas lides das leiras e na arte da rendeira, da fiandeira e da delicada criadora de palmitos de festa.
Das gentes minhotas, que a história fixou, ora com o sarcasmo feroz de Camilo Castelo Branco, ora com a compreensão e carinho de Luís de Magalhães, apresenta-nos Maria Emília Sena de Vasconcelos o retrato flagrante do "brasileiro" de torna-viagem, construtor de chalés "a dar nas vistas", bom e generoso, tão generoso e bom como o actual emigrante. A ambos, a poetisa confessa a sua estima: "porque à meta de tomarem/ ao lorrão onde nasceram/ uns e outros se ativeram./ Constantes".
E que sugestivos os dois poemas sobre antigos solares da nossa Ribeira-Lima! Um, lembra, doridamente, os paços abandonados, com o seu tempo de esplendor para sempre perdido; o outro, pelo contrário, é um "desafio ao derrotismo", revigorado na tradição, e a poetisa dá, como exemplo, a pontelimense Casa de Aurora.
Do amor a Viana de Maria Emília Sena de Vasconcelos, salienta-se o seu culto fecundo, de há longos anos, pelo trajo à lavradeira, quer de festa quer de trabalho. de que possui uma preciosa e gabada colecção.
Culto sobejamente reflectido neste livro, imprimindo-lhe uma riqueza etnográfica de alta valia.
Logo no Vaivém no Tempo, remirando a filha trajada com o mais belo fato rural do mundo, a poetisa exclama: “Olhem como ela veste bem/ o colete de varas, vidrilhado/ que faz a cintura fina,/ e a saia rica que arredonda a anca/ com a noite doce em barra de veludo/ e o sol macio no cetim dos folhos ... / / ( ... ) / do oiro sem par do seu grilhão/ ao par de brincos "à rainha"/ que a par do lenço lampejam ... / ou da libra da "peça" que lhe invejam ... / ao escudo real/ da frente do avental! (pendão que oscila, no ondular dos passos,/ todo bordado a "contas de luar" ... )”
Este "velho traje/da mordomia", que "torna a rapariga linda", ostenta-se, hoje, galhardamente, no cortejo etnográfico da romaria da Senhora da Agonia, e, no poema Mordomas, a escritora volta a descrevê-lo: "Também de negro trajada/ vem a mordoma ao cortejo:/ mas traz um lenço encarnado/ como vistosa moldura/ do vago sorriso-beijo". Igualmente Maria Emília Sena de Vasconcelos vestiu este vestido no cortejo da mordomia e "chinelava a preceito", com aquelas chinelinhas que são um dos maiores encantos do fato à vianesa. E "chinelando... chinelando...", lá seguia, brilhando-lhe no peito ufano a "custódia", os brincos "à rainha", a "laça" e o grilhão que "hoje, lá vão/ ao peito da filha" e da nora.
O fato de trabalho usa-o a velha fiandeira ("saia velha, de riscas; preta e vermelha").
E o da boieira é fielmente retratada deste jeito: "O grande, grande chapéu/ é um sol de palha--centeio/ doirada; Com a luz a escorrer em franja; entornada/ no lenço cor de laranjal do seio./ /Na saia curta, de lã, de cós redondo na anca,/ a lista fina, apertada, parece chuva miudinha/preta e branca; axadrezada/ com a larga barra-enxurrada da bainha!/ /E a lã álacre que tece/ o quadrado do avental/ é quente, quente e vermelha:/ tal qual! o sangue da leira chã/ - que nunca, nunca envelhece; por sinal..." E "quando a moça vai à praia/ colher o sargaço» ei-la de "lavada sapatilha", "saia/ branca. Franzida. De linho". E "quando a moça vai ao monte" enverga "a escura «fraldinha» urdida em grosso/ a saia de encosta/ posta,/ posta a luva para o roço.! sobre a foicinha.! - na perna lisa e lustrosa.! cautelosa,/ enfia a bota grosseira". E a moça que espadela a cantar! Essa, "tem uma blusa amarela/ de chita;! um lenço cor de canela; uma larga saia escura; um aventalito roto;/ uma laçada de fita/ nos tamancos de madeira".
Enfim, Maria Emília Sena de Vasconcelos faz-nos também apreciar, neste livro, com fino deleite, alguns dos variados trajas da mulher vianesa, tecidos em versos de bom tear, bom desenho, boa cor e bom-gosto.
Quase sempre as ilustrações de Manuel Couto Viana acompanham os pormenores, a beleza da descrição. O artista foi um dos principais estudiosos do fato à lavradeira, que ajudou a recuperar nos inícios deste século. E foi, bem no sabe a poetisa, seu mestre no amor e conhecimento da sua história, não longa mas fascinante.
Adivinho a satisfação e o orgulho que Manuel Couto Viana sentiria ao ver-se figurar nas páginas desta Minha Terra mais Pequena!
Terra que tanto ele como Maria Emília Sena de Vasconcelos, com os primores respectivamente da sua arte e da sua poesia, tornaram maior.
Lisboa, 13 de Março de 1994
ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA