São variados e ricos os temas abordados por Francisco Carneiro Fernandes na sua obra Viagens. Um dos poemas iniciais - "Ser poeta" - debruça-se sobre a importância e magnanimidade do ofício do poeta (não é casual que muitos dos seus poemas sejam dedicados a alguns dos maiores vultos da poesia portuguesa, tais como Augusto Gil, António Nobre, Mário de Sá-Carneiro, Alexandre O'Neill, Ary dos Santos, Fernando Pessoa e Cesário Verde). O título Viagens remete para uma nomadização que serve, afinal, de pretexto para uma reflexão ontológica sobre o eu no mundo e na vida ("Viagem", "Janelas"), assumindo contornos de intervenção activa num contexto de justiça social ("Rotas da Vida"). Assiste-se, inúmeras vezes, ao estabelecimento de uma antinomia passado / presente ("Olhares", "Nostalgia"), bem como à referência à passagem célere do tempo, à condição efémera do ser humano ("Relógio"). São também marcadas as datas comemorativas importantes tanto para o percurso individual como para o trajecto gregário do sujeito poético: "Dia do Pai", "Páscoa", "Balada de Natal", "Carnaval", "25 de Abril". Em "Cidade", o espaço-cidade é convocado como lugar de euforia sonhada / disforia concretizada. No entanto, são vários, aliás, os espaços urbanos que se desenham afectivamente nestas páginas: "Porto", "Melgaço", "Vila Praia de Âncora", "Ponte de Lima". São também convocados macro ("Portugal") e micro-espaços ("Café"), encerrando-se o livro com a meticulosa mimese da obra de arte cesariana "Sentimento de um ocidental": "O sentimento de um vianense". Emerge também desta poesia de convicções a defesa de valores humanos intemporais altruistas e construtivos: "Liberdade", "Amizade", Humildade", "Lei da Vida".
SER POETA
Quanto gesto silenciado Leva à alma do Poeta A alma do injustiçado!
Quanto silêncio roubado Canta com alma o Poeta Do coração destroçado!
Quanto eco num só momento Grita ao coração do Poeta O deserto em pensamento!
Uma espiga doirada, Um canteiro de flores, Uma noite fria estrelada, Um dia quente sem cores, Tudo e Nada O Poeta sente!
Por isso Camões,Cesário, Nobre, Pessoa, Vivem Sempre Eternamente!
ROTAS DA VIDA
Como eram belos os doces trinados! Que enlevo ver as rosas e os cravos Desmaiar fragrâncias no jardim De sóis, outrora vividos por mim!... Agora, porém, tudo se consumou: Espectro apocalíptico, sem fim, Cresceu... A alvorada jamais raiou!
Tu, irmão, nessa concha acomodado, Olvidando em sacrílega omissão Crianças de ventre dilatado, Navegas na rota da ostentação!
E tu, que das rotas do poder partilhas? Es incansável da lua justiça social... Agrilhoaste, com repastos de lentilhas, Razões humanas ao térreo Ideal!
Irmãos! Vós, que na rota da vida Semeais obuzes em vez de pão, Já pensastes no Ser sem guarida Sucumbindo célere à contradição?...
A rota dos dois cavaleiros assombrados É o holocausto, sem fronteiras, sem idade; Rios de sangue por eles são drenados. Em cantilenas alusivas à liberdade!...
Só tu, Irmão, que na rota de cada diaManténs acesa a chama da harmoniaSemeando gérmens de Amor leito Pão,Só tu... entoas bela Canção!Contigo, será apagada a nostalgia,Doces trinados, rosas e cravos desabrocharãoNuma aurora renascida em Poesia! 1984
NOSTALGIA
A António Nobre
Ó Virgens que passais, ao Sol-poente, Lá longe, nas quebradas de meu pranto! Vinde luzir quimeras, doce encanto, Através das janelas do presente!
Cantai, moçoilas! Cantai suavemente... Cantai à beira-mar a flor do campo, A fonte, o luar... Eu quero tanto Voltar ao velho Lar que está dormente!...
Ah pudesse abraçar a mocidade! Vê-la parar, sentir a mesma idade, Na minha Torre d'Anto, sem um ai...!
Cantai! Cantai, viçosas raparigas,Trovas de madrugar manhãs floridas! Passai ao Sol mais devagar... Cantai!
1998
RELÓGIO
Implacável relógio do tempo,Que marcas segundos, minutos e horas sem parar!.Que controlas um triste dia de alegria,E não olhas à eternidadeDum coração a sofrer!...
Relógio da minha sorte, sempre a bater, Batendo forte, sem piedade! Relógio maquinal, a trabalhar, Como se esta vida a correr p'rá morte Fosse assim Ião fácil de viverE controlar!
PÁSCOA
Em bandas azuis sonorasRepicam Aleluias de alecrim e alfazema!..Vestem na vereda da vida as nossas almas.Vestidas de roupagens brancasA cheirar às ervas frescasCom o aroma das rosas!...E em cada lar festivo.Voga no ar uma lavanda de Renovação!Tilintar mágico das manhas luminosas,Ritual Pascal feito Esperança,Vivido sempre igual por tanta gente,Mas para mim... Sempre diferente!
CIDADE
Sempre entendi Cidade Ponte ancestral de modernidade: Aldeia, Catedral Clássica,Praça Pública e Mercado Da Cultura Democrática!
Alguém sonhou um dia Cultivar Urbanidade: Arte, Civilidade, Cooperação, Tecnologia do trabalho universal!
Mas a fonte que alimenta A cidade... já secou! A ponte é uma estrada cinzenta, E a praça, espaço fechado, Aberto à realidade virtual Da cultura de mercado!
Sempre entendi CidadePonte ancestral de modernidade...
PORTO
Luz difusadeslumbrante,Dor de ausênciacompulsiva,Em dois momentos vitaisda minha vida de Estudante!O Portocom as coresQue a memóriavai pintando...
MELGAÇO
Melgaço é aquele abraçoSem fronteiras,Que desliza por vinhedos,Fragas e ribeiras,Acenando à GalizaE sussurrando ao Minho seus segredos!...
Vem, Amigo,Sentir por que choram de frioAs margens do rio em pleno inverno!
Descobrir a natureza em pranto,Naquelas almas serranasVestidas de negro, imaculadas de branco!
Partilhar do gesto fraterno.Quando a Serra desce às portas da RibeiraPara abraçar a Vila em dia de feira!
Escutar a Canção do Emigrante,Na hora longa da partidaE num curto instante de chegada!
Percorrer as pedras da velha calçada, De Fiães a Castro Laboreiro, De Paderne até à Orada!...
Melgaço... feito de pedra morena,Torre de MenagemLegenda da coragem de Inês Negra!...
Mais, muito mais.Do que mil e uni matizesPintados em paisagem natural,Melgaço, Amigo,É luta, caminho, raízes.Pedaço deste nosso Portugal!
VILA PRAIA DE ANCORA
As ondas batem, sem parar, Abrindo sulcos na rocha Que te deu identidade!... No Vale do Âncora Tudo escorre para o mar! Pico Ancorense, Dólmen da B airosa, Cultura Castrense, Cividade... Marcos de pedra afeiçoada ao tempo; Pedaços de terra à volta dum fogo; Espelhos d'água, que a Urze Canta em cascata na Serra d'Arga: — Ai quem com ela se cruze...! Caminho de História milenar Forjando a alma do Alto Minho!
Que força abrasivaA natureza tem em liberdade!Quanto sonho,Quanta luta desfeita em tumultosPela incerteza da própria vida!E ninguém repele os seus impulsos...Só a pele ressequida do Pescador,Deixando marcas de salNa sua cara-metade!...
As ondas batem sempre em Portugal,Com fragor, em dor sofrida,Coração de tantas mães!Gontinhães antiga,Vila Praia moderna:Cultura pré-romana;Pedreiros e marinheiros;Rio, serra, veiga,Ribas e enseada;Barco fora-de-borda.Masseira a remos;Praia, ferrovia, estância balnear;Comércio, serviços, hotelaria;Ondas de prédio em prédio a navegar.
Farol!Rede, anzol e armadilhaNas teias que a vida tece ao acordar!.Bruma, tempestade, sinal da Cruz!Bonança num areal que reluz pãoEm Procissão ao mar!E tanta espuma branca, tantaA desaguar .No imaginário de qualquer criança!...
Mas sempre Calvário,Gaivota a sangrar,Portinho que bota a rede ao marDeitando vida a perder!...Âncora Eterna,De Vila Praia modernaE Gontinhães antiga!Ancora de Santa MariaE Santa Marinha!Âncora-florDe madrugar coragem!... O mais são estórias.Num Livro de MemóriasAo Pescador!
PONTE DE LIMA
A Teófilo Carneiro
Por sobre as águas, lentamente, rio acima, Deixo meu berço em Viana, Para reencontrar raízes, no coração da Ribeira LimaDeslizam mil e um matizes nos milheirais, E reluzente, o sino da velha ermida Resiste ao tempo, a desmaiar sobre a linha do horizonteDesliza Fontão em plena várzea: Recordação d'infância em tons amenos. Perfumada pela casa rústica de avós paternos...Mais avante, unem-se as margens: estrada romana imperial;E passagens, azuis e brancas, de Portugal! Morena é Ponte de Lima, amuralhada em casco Verde é a alameda; doirado o pão e o vinho da sua bandeira!Paço, Torre, Solar, Turismo de Habitação. Abraços entre vinhedos, e desfolhadas na eira, Guardam segredos de tão remota e concorrida FeiraCom honras de nobreza em seu brasão!...
Arriba, S. João da Ribeira:"Vila Flora", onde hoje mora a saudade,Que Mendes Carneiro, meu tio-avô, soube pintar...E em Ponte de Lima pintou seu primo, Teófilo,Naquele banco de pedra... tão antigo,A metafísica dum tempo sempre enamorado!
Não sei cantar-te,És de alma e corpo a luz da perfeição!Só um vate apaixonado, como Bernardes, Teófilo, Feijó, Pode pintar teu coração!... Nobre, lealE mui antiga Vila em remansosas águas,Antes e depois de haver Portugal!
PORTUGAL
Aguarelas tonificadas de verde,Nas emoções profundas de quem as escolheu!Águas claras,Para mitigar nas Descobertas a sede,Revoltas em brumaAo dobrar o Cabo das TormentasE da Fortuna!...
Azul e branco,Campo ancorado, velas ao vento!Vermelhas são as quilhasDas caravelas em movimento...E amarelas, de negro tingidas,As bandeiras desfraldadas nas galés,De quem, sendo mesmo Português,Remou contra marés as suas vidas...E pereceu!
Camões pintou PortugalEm toda a sua extensão!Sonho imortal,Coragem, luta, determinação;Alegria real e fortuita;Paixão,Angústia, degredo, desolação!...
Pessoa, em Mensagem,Dá novo alento à coragemLusíada:Voz que glorifica os corpos,Projectando a Alma Universal!Bocage, Sophia AndresenE Jorge de Sena tecemA grandeza de Camões,Numa Epopeia acesa de incompreensões!...
Na poética das palavras nasce um rio: Presente, Passado, Futuro... É urgente conhecer Alma-lusa... Lusitana! Esculpir genuína identidade,Transformando paginas de um drama Num hino de ternura e de vontade!
AMIZADE
Sobre a beleza da Fraternidade Em água corrente, cristalina, Pouco se escreve. O coração bebe as palavrasQue a razão não sabeSeparar das águas...Só o sentimento de partilhaEnsina a escrever a Verdade!
HUMILDADE
Os Justos não têm idade:São luz da LuzEm plena harmonia!...
Os Justos são um fio d'ouro,Que reluz na TerraO seu tesouro:A CruzTransportada com humildade,Cultivando as raízesDa Sabedoria!