Nasci num fim de tarde vulcânico quando os Aliados punham as botas
libertadoras nas praias da Normandia, e milhares deles viam um anjo alado
sair-lhes do corpo e subir ao céu. Nenhum terá percebido que se tratava da
própria alma.
A parteira veio confirmar o milagre do nascimento, e tão engalanada como se viesse saudar o príncipe. Tinha razão eu era o príncipe. Horas depois, já
com a noite posta, o meu pai pegou-me ao colo e levou-me à janela para poder
contemplar o castelo que foi morada de D. Diniz, e sentir correr as águas do
rio Liz. Os grilos cantavam e havia um Zéfiro benigno que chegava dos lados
do Atlântico, empurrado pelas mãos de Diunisius. Ao levantar-me no ar, sob o
céu de estrelas, o meu pai, que era um comerciante próspero mas dados a
enigmas esotéricos, disse-me:"Eis o Universo a que pertences. Dele viste e
para ele partirás".
Isto marcou a minha personalidade curiosa, enciclopedista, de querer saber tudo. E marcou-me também com uma certa ingenuidade cósmica de que não me consigo libertar. Foi um parteira engalanada que me recebeu mas poderia ter
sido Rousseau.
Os saberes liceais nunca me interessaram e por isso fui mau aluno, com
notas péssimas a Português. Mas cedo descobri o abismo da leitura com
Camilo, Verne e Eurico Veríssimo. Eça era um proscrito. No burgo onde eu
nasci, ele colocara um tal Amaro, padre lúbrico, uma Amélia destemperada e
uma paralítica possuída pelo demónio. Naqueles tempos de salazarismo beato,
os meus conterrâneos não lhe perdoavam a desfaçatez de denegrir a terrinha.
Só aos sessentas anos é que comecei a escrever a sério, depois de
aposentado, movido de uma insatisfação crítica que nunca me abandonou.
Faço-o na terra que adoptei como minha, um burgo altiminhoto bailadeiro,
atraente e dono satisfeito da maior romaria portuguesa. Portuguesa? Não.
Planetária.
Os meus estudos universitários em Lisboa foram marcados por um acontecimento singular. Assisti ao primeiro espectáculo da Comuna "Para Onde is?" que me deixou alucinado e devoto pelo teatro. Percebi que havia mais mundo para lá da rua em macadame em que nasci.
Nos dois finais no Liceu em que chumbei, escrevi todo o texto para as
récitas de finalistas e numa delas até coloquei a Nanda e a Litas (duas
maternais prostitutas que nos desmamavam com muito carinho) a falar em cena.
Por causa disso, fui chamado ao reitor, e eu , a tremer de medo, ouvi-lhe
estas palavras: " Só não te expulso porque reconheço em ti a qualidade dos
grandes escritores." Devia estar a confundir-me com o Saramago ou com o
Mário Cláudio, o meu escritor de eleição. A verdade é que em toda a minha
vida nunca vi ninguém que se tivesse equivocado tanto.
Tenho ainda muito tempo para viver e penso deixar muitas obras
escritas. Agora que me escutem, pois até aqui, por causa da minha
curiosidade, só sabia escutar as vozes dos outros. Penso morrer em 2020 - é
um número bonito, equilibrado - e até lá tenho muito para escrever, bem mais
do que o tempo que me resta para viver. Depois regressarei, segundo o meu
pai, ao lugar donde vim: algures na Via Láctea.